domingo, 6 de dezembro de 2009

Sobre Pereira


Sostuvo
Pereira, após o tratamento nas fontes térmicas do Dr. Cardoso, que seu novo "eu" dominante poderia até mesmo tomar o controle. Entretanto, em hipótese alguma deixaria de falar com o retrato de sua falecida esposa, aquela "choca".

Para o post inaugural, Pereira ponderou sobre o conteúdo da primeira mensagem. Sem nada de original em mente - e levando em conta que já passava das duas da madrugada - entrou em seu quarto e vasculhou gavetas em busca de uns textos antigos, manuscritos há mais de ano e extremamente questionáveis quanto a qualquer qualidade literária. Achou, por final, um curto conto sobre um atropelamento em São Paulo, que começa mais ou menos assim:

No dia em que a estudante Anna Lopes, 21 anos, morreria, José Francisco, graduando em fotografia, acordou às oito da manhã. Olhou o despertador e, ao ver os ponteiros naquele ângulo, muito mais aberto do que se estivessem marcando sete horas e dez minutos, saltou da cama num susto. Neste mesmo instante, o policial militar Evaristo Gomes, de 42 anos, saudou seu superior, tenente Guilherme Dias, ao entrar na 23ª DP policial de Perdizes. Não muito longe dali, o porteiro Fernando Azevedo, responsável por um condomínio na avenida Paulista, informou ao morador Ricardo Andrade, jornalista de 28 anos, que a LDU goleara o Fluminense por cinco a um na noite anterior.


Nenhuma das personagens acima conhecia Anna, muito menos sabia que, ao meio dia e dez daquele fatídico 13 de novembro, no cruzamento da Consolação com a Paulista, ela morreria atropelada. Às oito e quarenta e cinco, Andrade entrou na redação da revista X, da qual é editor, e quase que deitou-se em sua desconfortável cadeira, de modo que apenas os ombros e pescoço não ficaram encobertos pela mesa. Dez minutos depois, José Francisco irrompeu ofegante na classe de Memória Fotográfica, desculpando-se pelo atraso de trinta minutos à professora, que nada fez senão olhá-lo com reprovação. Evaristo Gomes, por sua vez, terminou, às nove horas e dois minutos, de reportar a ronda realizada na noite anterior ao tenente Dias. Vinte minutos antes que tudo isso ocorresse, mais precisamente às oito e vinte e cinco, Anna Lopes, enquanto rumana para a faculdade, acionou com violência a buzina de seu carro, pois fora fechada por um motorista em plena marginal Pinheiros.


Às onze horas em ponto, o tenente Dias bateu na porta da sala de Evaristo Gomes, que arquivava os boletins de ocorrências registrados pela DP. "Você vai ter de me levar a academia da USP, surgiu uma reunião de última hora".Anna Lopes, neste instante, dividia as tarefas de um projeto de pesquisa com uma colega. Anna ficou encarregada de entrevistar algumas pessoas na avenida Paulista. O tema? Estresse no trânsito de São Paulo. Ricardo Andrade estava esparramado em sua cadeira de trabalho, às onze horas e trinta minutos. Ele lutava contra uma ininterrupta dor de cabeça, ressaca da festa que dera em seu apartamento na noite do dia 12. Ainda às onze horas e vinte minutos, José Francisco, que matara a segunda aula do dia, pegou um ônibus na avenida Francisco Matarazzo. Ele tinha uma entrevista de emprego na avenida Rebouças com a Sumaré em vinte minutos. Novamente, estava atrasado.


Eram dez para o meio dia quando Anna Lopes saiu de sua faculdade, na parte baixa da rua da Consolação, munida de gravador e um bloco de notas. Normalmente, ela faria o percurso até a Paulista com seu carro, mas naquela sexta-feira, por alguma razão desconhecida, se sentia disposta o suficiente para uma caminhada. O ônibus em que estava José Francisco entrou, três minutos antes, na avenida Angélica. Isso significa que, se a avenida estivesse desobstruída, o motorista Rodolfo Dias, vizinho do vigilante Azevedo no bairro de Perus e sem nenhum parentesco com o tenente Guilherme, passaria com seu ônibus em exatos vinte minutos (e a sessenta quilômetros por hora) pelo cruzamento da Consolação com a Paulista, o suficiente para matar Anna, que, caso o leitor já tenha esquecido, será atropelada fatalmente ao meio dia e dez minutos deste funesto dia. O tenente Guilherme Dias nesse momento retornou ao carro em que Evaristo Gomes esperava, em frente à academia, na Cidade Universitária. O oficial estava mal-humorado, uma vez que a reunião fora cancelada e a viagem, perdida.


Faltando vinte para o meio dia, portanto dez minutos antes de Anna Lopes deixar sua faculdade e percorrer sua última meia hora de vida e treze minutos antes do ônibus em que estava José Francisco entrar na avenida Angélica, Ricardo Andrade decidiu que não estava em condições de trabalhar, inventou uma desculpa qualquer a sua superior e saiu rumo ao seu apartamento. Vinte minutos mais tarde, ou seja, ao meio dia, a viatura policial em que estavam Evaristo Gomes e o tenente Dias deixou o túnel da Rebouças, ao lado do shopping Eldorado. Simultaneamente, o ônibus conduzido por Rodolfo Dias margeava os muros do cemitério da Consolação, antes de entrar na avenida de mesmo nome.


Depois de oito minutos, nos últimos cento e vinte segundos de sua vida, o semáforo de pedestres mudou para vermelho e Anna Lopes foi obrigada a aguardar para atravessar o cruzamento. O motor do ônibus em que estava José Francisco rugiu escandalosamente, pois a faixa exclusiva estava livre e Rodolfo Dias vislumbrou uma das raras sensações de liberdade em seu trabalho, traduzida em exatos sessenta quilômetros por hora. Poucos segundos mais tarde, a instantes do horário marcado para o falecimento, José Francisco olhou despretensiosamente pela janela do ônibus e viu Anna Lopes parada na calçada. Tirou a câmera Nikon da mala e, discretamente, fotografou-a, sem saber bem o por que. Foi quando, cinco segundos adiante, o farol de pedestres finalmente se abriu e Anna lançou-se pela faixa. Um desatento Ricardo Andrade, que tentava aproveitar o farol amarelo com seu carro, chocou-se contra a estudante, que foi arremessada avenida adiante como um boneco de pano desengonçado, totalmente desprovida dos sentidos. Os policiais Gomes e Dias, que viram a cena do outro lado da avenida, onde aguardavam a abertura do semáforo, correram e tentaram socorrê-la, sem sucesso. Também impediram a tentativa de fuga de um amedrontado Ricardo Andrade, e o linchamento do mesmo pela população que ali estava, indignada. José Francisco, perplexo, nada demonstrou, seu semblante fora congelado pelo que acabara de presenciar. Ele apenas viu toda a confusão afastar-se na medida em que Rodolfo Dias seguiu adiante com seu ônibus, que afinal, não podia deter-se ali por muito tempo.


Fernando Azevedo, o porteiro do condomínio, que nada teve a ver com a história, ficou sabendo de um acidente qualquer por seu vizinho, o motorista de ônibus Rodolfo Dias. Só no dia seguinte, ao abrir o jornal e ver impressa a foto tirada por um tal de José Francisco, finalmente entendeu porque Ricardo Andrade não retornara a casa na tarde anterior.


Também sostuvo Pereira que o texto é, no frigir dos ovos, um plágio barato.




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