domingo, 10 de abril de 2011

Travessia

Anderson era filho da terra. Me lembro dele de cócoras em baixo da mangueira, tragando um cigarro com propriedade de homem feito, muito além dos seus quatorze anos. Os olhos? Os olhos eram puro desafio.

Me passou um cigarro, e eu vacilei por um momento enquanto corria o palito entre os dedos. “Não sei, se ficarem sabendo me matam”. “Vá lá, e você por acaso vai contar para alguém? O meu nem fingiu desgosto, tempo depois eu não precisava esconder mais o maço... Ande, traga a coisa”.

Dei de ombros, simulei coragem e traguei a fumaça com toda a habilidade de um virgem. Tontura, ânsia de vômito e tosse, muita tosse. Sarei só com um violento tapa nas costas. “Veja só, nem morreu. Agora mais uma vez, com calma, deixa a fumaça entrar devagar”.

Eu ri, agradecido, na época tinha uma face quase feminina de criança bem nascida, pele lisa feito pano de linho caro. Ao olhá-lo de volta, recebi aquela encarada de troça, de quem se diverte em ver duas passagens de tempo tão diferentes em corpos da mesma idade.

Lá do alto do pasto ouviu-se um relincho. A égua tinha disparado pelo campo esquivando-se do Benedito, o peão pai de Anderson, que a seguiu de chapéu abanando no ar, resmungão. “Olha só, meu pai não toma jeito nem pra serviço de mandado”, dizia Anderson. Achamos graça, ainda era manhã e o dia parecia ser imenso como o mato infinito.

Naquele dia, lembro que Anderson não tirava os olhos de mim, do jeito que eu me vestia, roupas brilhantes de novas escoradas nas raízes da mangueira. Ele mordeu os beiços num sorriso imenso e arrematou: “Pro rio?” “Que rio, a represa?” “Que seja, e para com essa mania de me corrigir, já falei”. “Tá, tá, mas a represa é muito perigoso, e você lá sabe guiar barco?” – Anderson fechou a cara, fez voz de autoridade – “Fui com meu pai atravessar saca de farinha na semana passada, remei a tarde inteira”. “Até onde?” “Prainha”. “Mas é muito longe”. “Você é que é um cagão”.

Dum mato ali perto surgiu brusco um tatu, que cruzou ligeiro bem diante de nós. Coisa incomum, inesperada. Mantivemos o silêncio, Anderson me deu as costas e ficou um bom tempo inebriado com a visão da represa da Barra, que, pelo menos para a sua vista, não acabava nunca.

Antes, há muitos anos, a água corria. Ali fora uma vez passagem do rio Piracicaba, que léguas adiante, diziam, se juntava com outro rio ainda maior – será possível? – e juntos desaguavam no mar. Hoje já não era, nem as pessoas mais contavam as distâncias em léguas. Ficaram só os relatos dos nossos pais, que quando crianças nadavam pelados nas margens do Piracicaba.

“Você bem sabe que meu avô não deixa a gente subir no barco assim sozinhos. E se tomba, o que a gente faz?” “Teu avô por acaso disse para você ir no Alegria comer as putas?” – Eu corei de vergonha – “Pois então, eu não te levei lá? Aqui é quase a mesma coisa, esquece do velho por um minuto e confia em mim”.

“Não sei, tenho um pouco de medo”, confessei. Eu tinha diante de mim uma figura triunfal, que abriu um sorriso amarelo, dentes por demais separados uns dos outros; o cabelo crespo, textura quase mulata, áspera de tanta terra e poeira já grudadas na pele. Os lábios eram desafio... e satisfação. Um gigante.

“C-A-G-Ã-O. Se não quer, vou eu mais eu”, e Anderson atirou-se pelo barranco que terminava no casebre de bambu dos pescadores. Mal podia conter-se, desfez o nó que prendia o barco a uma estaca. Já dava com as canelas no barro úmido quando avistou-me atrás de si. “Não fode, vou com você”.

O barquinho não aguentava mais de quatro pessoas. Era simples, para pescarias fáceis e adepto de poucas aventuras. Ao menor sinal de tempo bravio, rezava a prudência retornar e não provocar a sorte. Só que naquele dia qualquer preocupação parecia exagero. O céu limpo, nuvens quase diluídas no azul de tão frágeis. Vinha uma brisa quente que chocava contra nossos peitos nus e aquecia os pulmões. Água parada, vencida, morta.

Não remamos muito, dava para avistar a margem e a casinha de bambu. Ouvia-se somente a brisa morna e o barco pendendo para um lado e para o outro. Fumamos enquanto Anderson me perguntava da vida em São Paulo, de viagens para o exterior, de filmes no cinema e estádios de futebol. Eu me interessava mais por pontapés dados no nos moleques do sítio, cavalgadas de três dias ao alto da serra, cicatrizes deixadas por Dito que ele exibia com orgulho. “Essa foi por uma vez que matei aula para beber com o Damião. Cheguei em casa e o velho já estava com a cinta na mão, a filha da puta da professora tinha contado tudo. Aguentei feito homem, não chorei nem nada”.

Vez por outra atravessavam as margens amontoados de quero-quero em voo baixo, a gente até se abaixava. Ficamos ali por mais de uma hora, agora quietos, deitados com os braços a proteger os olhos do Sol. O barco vinha e ia a esmo, e da represa subia um cheiro de pouca vida, até mareava o estômago.

Anderson olhou-me demoradamente mais uma vez, semi-adormecido, e abriu mais uma vez o sorriso amarelado. Eu já sabia que esses olhares cheios de troça e curiosidade vinham acompanhados de algum gesto para colocar-me à prova. Ele botou-se de pé, sentiu que o barco desequilibrou-se para a direita, e, feito um trapezista, apoiou os dois pés nas quinas do barco. “Tá louco? Você vai virar a coisa!” – Eu acordei e agarrei imediatamente as laterais de metal – “Louco? Vá lá! Eu agora comando tudo, escolho se a gente volta a nado ou não”. Antes mesmo de me deixar retrucar, Anderson flexionou a coxa direita e vez o barco pender para o lado, não tombou por pouco.

“Desce, porra! Assim você mata a gente. Desce ou...”. “Ou o quê? Você vai me bater?” “Não”. “Já sei, ou o seu avô vai mandar meu pai embora”. “Não, esquece o que eu disse, só desce, por favor”. “Tá bom” – Claro que ele não desceu, estava imóvel suspenso pelas quinas do barco, e eu ainda dei-lhe a satisfação de ver-me suplicar feito uma criança. Foi quando Anderson me encarou e riu mais amarelado do que nunca, com um gosto só: puxou o pé direito para junto da quina da esquerda, o barquinho projetou-se leve no ar e fomos os dois para a água.
Braçadas de desespero, eu retornei à superfície. Era tudo igual, a água continuava densa escura, o cheiro ainda desagradava os sentidos, os quero-quero passavam baixos, somente o barquinho flutuava inverso. E Anderson? Não estava. Esperei por mais alguns segundos, dei tempo para que a respiração se acalmasse. “Anderson! Anderson!”. Minha voz parecia ser engolida pelo remanso de tanta água. Virei, busquei as margens, esperando que por milagre ele reaparecesse ali, nadando com os braços fortes e negros. Mas era só água.

Agarrei-me no barco. Meu peito tinha sido invadido por um temor sem tamanho, um medo da perda, medo do Dito e seus olhos avermelhados de raiva, medo do meu avô. Para meu alívio, Anderson logo apareceu das profundezas, gargalhando incontrolável, satisfeito com minha cara de medo. “Tu não toma jeito mesmo, não é?”

Rimos e, apesar de assustado, senti-me cheio de satisfação, pleno. Demorou pouco para que eu avistasse na margem a silhueta do Dito, que acenava violentamente com os braços. Nos apoiamos no barco virado e o empurramos de volta à margem. Mal chegamos, o Dito agarrou o filho pela camiseta e arrastou-o morro acima. Anderson ia de cabeça baixa, sabendo que lutar seria inútil. Mas encontrou tempo e coragem para olhar de relance para mim, ainda inerte ao lado do barco, e mostrar aquele sorriso amarelo de satisfação desmedida uma última vez. No dia seguinte, voltamos a nos encontrar.

domingo, 15 de agosto de 2010

Sobre o acaso

Sostuvo Pereira, meio atordoado ao receber esta imagem de um amigo em viagem, ser possível que duas pessoas gostem do mesmo filme ao ponto de batizar algum projeto pessoal com o título do mesmo. O dele, certamente, muito mais modesto do que o charmoso sebinho granadeño.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Sobre Violeta

1.
Ana Luíza estava apreensiva. Apoiava o corpo pequenino contra a pilastra da varanda, e o rosto de menina encostava no concreto frio. Ela nem se dava conta, mantinha os olhos arregalados na silhueta corpulenta da avó, que assistia tristonha com a cabeça enquanto falava ao telefone.

- Entendi. Claro, vocês têm toda a razão, não direi nada.

Ao levantar um pouco a vista, Ana Luíza deparou-se com o centenário relógio de pêndulo fixado acima da porta da sala. Mesmo tendo frequentado semanalmente aquela casa desde que nascera, só agora reparava no vai e vem incessante do pêndulo metálico. Não havia mais ninguém ali, o ambiente fora engolido pelo silêncio absoluto, quebrado apenas pelo alerta constante da passagem do tempo provocado pelas rudimentares engrenagens do relógio: dom, dom, dom, dom. Esse ruído maldito fez com que Ana Luíza se sentisse dentro de uma igreja enorme e silenciosa, e ela detestava igrejas.

Sua avó a levara uma vez, aos quatro anos. Excitou-se toda no caminho ao ver uma multidão confluindo à praça principal da cidade. Ficou hipnotizada com as centenas de sapatos velhos e surrados sendo arrastados pelo asfalto, um carnaval de solas e tiras de couro subitamente engolido pelo silêncio sepulcral da abóboda sagrada. Durante a hora e meia do serviço, Ana Luíza não conseguiu prestar atenção no padre. Ele era como o chiado das catracas do relógio, únicas a produzir som num ambiente enorme e muito triste. Dom, dom, dom, dom... Ela não gostava daquela devoção pelo silêncio, devoção à própria existência suspensa igual a uma pluma no ar.

- Por que as pessoas não falam nada aqui dentro? – perguntava-se.

Assim, como na igreja há três anos, Ana Luíza sentiu muito medo do silêncio da cozinha. Acuada, decidiu procurar por seu irmão.


2.
Rafael estava com os membros enterrados numa grande caixa de areia. Tinha três anos na época, e com uma pazinha enchia um balde para depois esvaziá-lo por cima de uns tantos bonecos de heróis, que dentro de pouco seriam totalmente tragados pelo Saara.

- Rafinha – disse Ana Luíza com voz preocupada – eu acho que a Violeta está muito mal, ninguém voltou ainda.

O menino nem respondeu. Seus olhos estavam de tal maneira fixos nas miniaturas a ponto de ser asfixiadas que não percebeu o que acabara de dizer sua irmã.

- Rafa, me escuta! Eu acho que a Violeta pode morrer.

Rafael olhou por um momento para aquela expressão indignada. Repetiu a palavra morrer de forma insegura, como tantas outras pronunciadas pelos maiores que desconhecia. Seu semblante confuso confessava que ele não sabia o que aquilo significava, morrer... Nos desenhos de ação que assistia algumas pessoas morriam, mas nos episódios seguintes reapareciam, às vezes reviviam e se envolviam em novas empreitadas. Morrer, para aquela criança, significava tão somente o desfecho de uma aventura, normalmente a vitória do herói frente ao vilão. Um fim que era também o recomeço de uma nova brincadeira, de um novo jogo. Enfim, para ele morrer era uma palavra vazia e indissociável a outras como jogo, disputa, desafio, diversão. Morrer era parte da diversão.

Diante da indiferença do irmão, Ana Luíza desferiu um pontapé no boneco do Homem-Aranha, lançado em piruetas pelo ar até rebater contra a parede de bambu da casinha de bonecas. Por fim conseguira a atenção do pequeno, um estridente choro de revolta contra a inexplicável violência dos mais velhos.

3.
Foi quando Ana Luíza escutou o motor do carro aproximando-se. Percorreu em disparada a sacada e escondeu-se atrás de um coqueiro próximo ao portão. Viu descer sua mãe primeiro, cabisbaixa e melancólica como nunca a vira antes. Depois saiu seu pai, que abriu a porta traseira para pegar um embrulho de cobertores do tamanho de um vaso de flores.

O coração de Ana Luíza começou a palpitar descontrolado. Seus olhinhos arderam com o sal de algumas lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. Estava difícil respirar, esforçava-se, mas pouquíssimo oxigênio alcançava seus pulmões. Era como o ar da igreja, denso e pesado, teimoso. Flagrou-se soluçando, um soluço doído. Não tardou a ouvir a voz de sua mãe, arrastada feito o relógio de pêndulo ou o sacerdote da igreja:

- Aninha... vem cá, meu amor.

4.
Uma nuvem de poeira ergueu-se por detrás de Ana Luíza, que corria em disparada pelo pasto do avô. À sua frente, o campo infinito de grama e terra batida, cercado por todos os lados por uma muralha de cana de açúcar. Não sabia como ainda tinha forças para correr, pois o choro consumia toda sua energia. Às costas, a imagem de sua mãe ia se apequenando a cada passada, a cada novo tufão de poeira seca que se formava.

Correu por meia hora, até parar debaixo do grande pé de manga que delimitava o fim do pasto e da propriedade. Enfiou a cabeça por entre os joelhos e tentou recuperar o fôlego. “Aninha, tente entender, não pudemos fazer nada. A Violeta entrou na plantação em que tinham acabado de jogar veneno para formiga”. A explicação de sua mãe não era suficiente. A Violeta não tinha nem um ano, era ainda um filhote. Fora seu tão esperado presente de aniversário de seis anos, um regalo ganho após anos de insistência e promessas de responsabilidade. Que justiça havia nisso?

Já não chorava, o pranto tinha sido substituído por uma cólera muda e desmedida. Algo havia sido roubado de si, algo precioso e irrecuperável. O ladrão lhe havia negado anos de felicidade, momentos por vir de prazer. Pelo que? Por uma imagem medonha da boca de um filhote espumando, de dois olhos miúdos suplicando por socorro à dona. Súplica inútil. Como aquilo lhe oprimia o coração, a tinham roubado e era preciso fazer algo a respeito. Procurou nos arredores pelo culpado. Um peão, talvez, que despejara o veneno na plantação. Ou mesmo seu próprio avô, mandante do serviço. Até seu pai, que se esqueceu de fechar o portão do quintal. Mas não havia ninguém, apenas o deserto de mato amarronzado com cheiro de brasa.

Enfurecida, Ana Luíza ergueu a cabeça e contemplou um exército de nuvens e marcha. Ventava muito. Segurou um pedregulho e com todas suas forças atirou-o contra os céus, mas o projétil não fez mais do que despencar em parábola. As colossais nuvens brancas fizeram que não viram a tentativa de agressão da menina. Outra pedra foi arremessada, e nada. Quando estava prestes e cair no choro novamente, reparou numa fila de formigas cruzando o caminho de terra. Esmagou a primeira com o polegar, morta após segundos de contorcimento. As nuvens mantinham a passada decidida, indiferentes. Estraçalhou a segunda formiga, e antes mesmo de conferir qualquer reação das nuvens já dera cabo em outras três. Mesmo assim, não houve resposta. Insatisfeita, Ana Luíza usou o chinelo para matar tantas quanto fosse possível de um só vez, e atendendo a um ímpeto inexplicável, pôs-se a saltar sobre o terreiro. Quando baixou a poeira, quase um centenar de formigas jazia morto, carnificina perpretada por Ana Luíza Cerqueira, menina de pouco mais de sete anos. Os insetos agonizam em conjunto, os sobreviventes escapavam pela grama. Segura de que agora era impossível passar desapercebida, mirou ansiosa o azul do céu. Nada! Nem chuva, nem um trovão ou corrente de ar inesperada. Apenas aquele exército branco a marchar lenta e constantemente.

Sentada junto à mangueira mais uma vez, Ana Luíza tornou a chorar. Lágrimas ardidas, com gosto da tragédia humana. Juntava com as mãozinhas imundas as pedras que rodeavam as raízes da árvore. Entregue a mais profunda tristeza, mal percebeu que algo tocava seu joelho. Era um pequeno gatinho, ainda recém-nascido, provavelmente abandonado por um dos trabalhadores que habitavam as cercanias. Os pelos eram tingidos de cinza e preto e o narizinho quase que totalmente rosado, desbotado. Ana Luíza afagou-lhe a nuca para depois percorrer com os dedos sua espinha em forma de arco. Abraçou-o contra o peito, e aquela pelugem macia como de pelúcia fez com que a imagem de Violeta reaparecesse nítida em sua mente. Voltou a sentir ódio, um ódio contra todos que de alguma forma estavam envolvidos na repugnante morte de seu bichinho de estimação. Sua avó falava muito em Deus, da bondade e misericórdia infinita daquele senhor que morava em cima das nuvens. Mais de uma vez contara que ele podia fazer tudo e ver a todos, não importa onde estivessem. Se fosse verdade, Deus teria visto Violeta encarar com curiosidade o portão aberto. Ele observá-la-ia percorrendo ligeira o matagal até perder-se entre as varas de cana de açúcar, um mar ondulando a mercê da vontade das rajadas de ar. Ele saberia de tudo muito antes de acontecer, e mesmo assim Violeta era morta.

Na medida em que esse raciocínio avançava, Ana Luíza ia enrijecendo os braços, até senti-los aquecidos pela pulsação viva da jugular do animal. Fora roubada sua maior preciosidade, motivo de admiração entre as amiguinhas do bairro. Fora roubada de forma tão bruta e crua, sem remediação ou possibilidades de um pedido de desculpas. E não podia fazer nada a respeito. A não ser... Seus braços estavam duros como pedra, sufocando o felino. Ela não dava sinais de que pretendia aliviá-los, tinha sido roubada! “Tirou-me uma vida, eis aqui teu troco, bruto e cru assim como sufocou Violeta”.

Teria enforcado o frágil gato não fosse um miado de dor que ouviu no último minuto. Era um som diferente de tudo o que escutara no dia, talvez algo parecido com o que gritaria Violeta caso tivesse forças quando entrara já cambaleando no jardim. Tratava-se de um grito agudo, diverso do metálico ir e vir das engrenagens do relógio, ou do soberano timbre do padre, ou da sofrida voz de sua mãe. “Aninha... vem cá, meu amor”.

Ana Luíza berrou horrorizada, como se despertasse de um transe, afrouxou os pulsos e deixou o gato escapar. Não ventava mais tão forte, o Sol abrasava aquela face lisa de criança. Encheu o peito de ar, o odor da grama ressecada, costumaz daquela estação quente, invadiu-lhe as narinas. Engoliu o restante do pranto feito quem toma um remédio amargo, porém necessário, e retornou a passadas trôpegas a casa. Acima de si, as mesmas nuvens seguiam seu caminho como se nada houvesse acontecido.

domingo, 25 de abril de 2010

Sobre as parábolas

Vendo o filme A Dúvida recentemente, Pereira se deparou com uma interessante historieta. Não pelo conteúdo didático em si, mas por subitamente lembrar-se de sua mãe contando exatamente a mesma trama quando ele era ainda pequeno. Começa assim:

Era uma vez uma gentil anciã de olhos caridosos e querida por todos. Um dia, entretanto, ela cometeu um ato terrível. Levada por insinuações e incertezas, deu falso testemunho contra uma pessoa que pouco conhecia. Semanas depois, ao ser alertada por um amigo da terrível consequencia de suas ações, seu coração se encheu de culpa e ela decidiu recorrer à igreja por perdão. Adentrou no confessionário:

- Padre, cometi uma grande injustiça - e revelou o ocorrido.

Sentia-se extremamente oprimida pelo remorso, mas também aliviada por estar prestes a receber a remissão do pecado por meio da penitência.

- O que faço para me desculparem, senhor? - concluiu.

- Mulher desgraçada, para ti não há redenção. Teu crime é irreparável - esbravejou o padre.

Feito um martelo, o sangue da senhora começou a pulsar em desespero, num descompasso que ruborizou suas faces.

- Mas meu senhor, deve haver um modo. Por Deus, quero e estou aqui para encontrar o perdão divino.

- Bem - recomeçou o sacerdote - a redenção do Senhor já a tens, ele na sua bondade infinita te compreende e acolhe. Quanto a reparar teu erro entre os homens, talvez haja uma única maneira.

A mulher quase encostou a orelha na grade que dividia o confessionário ao meio

- Diga, padre, pelo amor de Deus fale logo.

- Espero um dia nublado e de ventos potentes, um dia em que o céu esteja tão revolto que seja evidente a cólera divina. Com um travesseiro e uma faca em mãos, suba até o campanário dessa mesma igreja. Quando estiver lá em cima, apunhale o travesseiro e deixe a ventania carregar as penas por todos os cantos - A anciã estava espantada, sem entender o objetivo do confessor - Depois desça e se preste a recolher todas as plumas, cada uma delas, sem excessão. Traga-as todas a mim.

- Mas isso é impossível, elas voariam para as partes mais distantes e eu nunca encontraria todas - retrucou a pecadora.

- Certíssimo, minha criança, mas é o que acontece quando se espalha falsidades e intrigas. Deus te perdoa em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.

domingo, 11 de abril de 2010

Sobre o quase fim de Pereira, em quatro atos

1. Morto-vivo

Apesar de ser início de setembro, aquele dia amanhecera misteriosamente frio. Os pés de Pereira estavam gelados, como se fossem feitos de vidro e pudessem se romper ao menor choque. Para deixar sua casa rumo à escola, onde lecionaria a aula inaugural de Filosofia ao nono ano, cobriu-se com uma malha de lã. Mesmo assim, como ainda sentia um frio incomodo nas juntas e músculos, decidiu resgatar a pesada casaca do armário, que passava pelo esquecimento anual de veraneio.

Ao abrir a porta e pisar na calçada, veio o espanto. Pessoas caminhavam trajando roupas leves e frescas, alguns de bermudas e camisetas, uns outros, mais formais, levavam calças e camisas de mangas curtas, visivelmente molestados pelo árido calor peninsular, tão conhecido daquele mês. Um jovem passou pelo velho agasalhado Pereira, que nessa ocasião tinha entre 55 e 60 anos, e, surpreso, pôs-se a abanar com a gola da camiseta o peito seminu, pois a simples visão daquele corpo metido em camadas e camadas de tecido o sufocava.

“Devo estar doente”, pensou enquanto apalpava as bochechas com as costas dos dedos. Sua face ardia em brasa, contrastando com as mãos gélidas e descoloridas, feito membros de um cadáver. “Talvez não seja prudente ir dar aulas hoje, devo estar com febre. Mas é o primeiro dia e já reservei o projetor para o filme. E se for algo mais sério? Que besteira! Ontem mesmo eu estava perfeitamente saudável, depois da lição retorno a casa para repousar, e pronto. Mas será que não é teimosia demais, descuido besta?” A hesitação e indecisão apoderaram-se da mente. Enquanto isso, sem se dar conta, suas pernas tomaram vida própria e o carregaram pelas ruas de Lisboa, pelo mesmo trajeto que fazia todos os dias e, por isso, dispensava qualquer nível de consciência. Quando, por fim, resolveu que estava realmente enfermo e seria aconselhável regressar, viu-se já sendo sacolejado pelo ônibus. Nem mesmo o abafado ar do interior do carro fez com que se sentisse aquecido e, em determinado momento, um calafrio lhe subiu violentamente a espinha, fazendo com que se enfiasse ainda mais dentro da gola da casaca. Foi quando notou, meio que por acaso, o edifício da escola ficando maior conforme a condução avançava. “Não tem jeito, agora tenho que ir”. Deu sinal ao motorista e desceu.

2. A aula

O colégio secundário se situava em um amplo edifício retangular de quatro andares. Um pequeno jardim além dos portões de metal, que de velhos e vacilantes rangiam escandalosos quando abriam e fechavam, dava para a entrada principal. Na portaria trabalhava a secretária, uma quarentona de nome Amália e feições carrancudas. O restante do espaço se prolongava por mais de cem metros, e em cada lado estavam dispostas salas de aula. Pereira caminhou até o final do corredor, cabisbaixo para abrigar o pescoço dentro da casaca, com a mão livre enfiada fundo no bolso, e tomou as escadarias que o levaria ao quarto andar. Diversas vezes ateve-se entre um degrau e outro para recuperar o ar e escorar-se no corrimão, fatigado. Antes de entrar na terceira sala à esquerda, permaneceu por instantes imóvel ao lado da porta, como um gladiador a reunir forças e coragem diante da arena. Por fim respirou fundo, enxugou a testa com a manga aveludada e entrou.

As salas eram espaçosas e as paredes, altas. Havia três amplas janelas no lado oposto à porta, que dava para a quadra de esportes. Eram vidraças sustentadas por firmes esquadrias de ferro, que iluminavam o ambiente por completo, tornando as lâmpadas suspensas no teto inúteis. A intensidade dos raios solares daquele dia de verão infernal era absorvida pelos vidros, e a sala ficou com temperatura de uma estufa. Pereira depositou a maleta de couro em sua cadeira, apoiou ambos punhos sobre a mesa e dobrou os braços, ficando em posição de flexão. Esboçou um tímido e quase incompreensível bom dia a turma e explicou que todos assistiriam ao filme O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, como primeira atividade do ano. Claro que o professor havia preparado uma introdução ao ensino da Filosofia, para ser apresentada antes da projeção: o que estudariam naquele ano, porque havia escolhido esse filme para ilustrar algumas das questões do cronograma, etc. Mas o inexplicável frio que sentia enfraquecia o corpo, seus olhos salpicavam doloridos e uma estranha irritação aquecia as bochechas, ao mesmo tempo em que sentia os pulsos e pés enfiados em baldes de gelo. Além do mais, aquela luminosidade excessiva agredia as pálpebras, turvando a visão e outros sentidos, e o velho não sabia ao certo o que ouvia, cheirava ou enxergava. Ordenou logo que fechassem as cortinas, entregou o DVD à aluna mais próxima - que se espantou com a expressão de calvário do mestre - e disse: “coloque isso no projetor, depois do filme eu explico melhor”.

Os mais de trinta alunos assistiram intrigados às primeiras cenas do filme. Não pelo enredo em si, pois se mostravam visivelmente desinteressados com o encontro do cavaleiro medieval e a morte em uma praia rochosa da Suécia. Estavam todos com os olhos fixos naquele excêntrico professor de Filosofia, que a grande maioria não conhecia e apenas alguns se lembravam de tê-lo visto pelos corredores em anos anteriores. Um grupo de cinco garotos começou a rir baixo do homem sentado na mesa diante de todos, com os cotovelos sustentando todo o peso do corpo e as mãos coladas umas às outras, para vencer a temperatura, mas foram logo censurados por um sofrido “atenção!” de Pereira. Assim, com todos apreensivos, seguiu a trama: o cavaleiro e a parca começam o jogo de xadrez; ele e seu escudeiro perambulam de povoado em povoado, sempre rodeados pelo morticínio causado pela peste; encontra o casal de atores, quando vê um resquício de vida e felicidade em meio às almas eternamente flageladas pela fome, morte e inquisição. Na medida em que o filme se aproximava do final, com a trupe atravessando a passos cuidadosos a densa floresta, Pereira sentiu que um repentino mal-estar começou a formar-se também em seu estômago. A febre aumentara e ele escondeu o rosto entre as palmas, momento em que se deu conta de que sua testa se desmanchava em suor. A baixíssima sensação térmica agora não atingia apenas as mãos e os pés, mas também o restante dos braços e pernas. Quando o casal de atores armou acampamento dentro da carroça, ao lado do cavaleiro e dos demais, os olhos de Pereira lacrimejavam descontroladamente. Um desespero foi se apossando de seu espírito (nunca havia passado por nada parecido), e o medo era tamanho que se confundia com o enjôo que molestava suas entranhas, com o arder de sua face, o salpicar dos olhos e a sensação de debilidade dos membros. Pereira então mirou uma última vez a tela - exatamente no momento em que o cavaleiro arremessa o tabuleiro aos ares, a fim de distrair a morte e permitir que o casal de atores fuja -, sentiu que algo amargo lhe envolvia o estômago e se preparava para subir até as narinas, teve um fortíssimo calafrio que enrijeceu seus nervos, viu a luz do projetor anestesiar a visão, perdeu os sentidos e se esfacelou no chão de madeira, para gritos de horror dos alunos

3. O jogo e um diálogo

De tanto banhar o rosto, o sal da água do mar já ressecava os lábios de Pereira. Aos poucos foi recuperando a consciência: primeiro enxergou borrões cinzas tomarem forma de escarpas montanhosas, sentiu a áspera textura de areias e pedras com as pontas dos dedos, e ouviu a suave brisa acariciar sua pele. Pôs-se em pé. Estava em meio a uma praia rochosa, dessas que só se encontram em regiões setentrionais e muito distantes de Portugal. O céu estava encoberto por pesadas nuvens enegrecidas, e elas produziam trovões estrondosos, o que agitava violentamente o mar. Era, enfim, uma paisagem muito semelhante, se não idêntica, a cena inicial do filme de Bergman. O silvo do vento, os céus em ressaca e a ausência de sol levavam a crer que fazia um frio agudo, mas curiosamente Pereira não se sentia mais incomodado. Tampouco fazia calor; na verdade não sabia bem ao certo o que sentia, nem se sentia alguma coisa de fato. A alguns metros, reconheceu de costas, debruçado sobre si mesmo e encapuzado, o cavaleiro medieval, que tinha na capa um vistoso bordado da cruz de malta. Pereira aproximou-se cauteloso e, ao tocar o ombro revestido pela cota de malha, o templário deslizou para fora da pedra e caiu inerte no chão, revelando que dentro do capuz não havia nada além de um crânio asqueroso e carcomido. O português não teve tempo de gritar, muito menos de afastar-se num salto, pois uma voz cadenciada e grave chamava por seu nome.

- Olá – Pereira atendeu à saudação e se deparou com a morte do filme, um homem alto e esguio, metido numa comprida batina negra e com uma face levemente roliça, mas totalmente esbranquiçada. A incredulidade confessa fez com que o velho se mantivesse em silêncio por alguns segundos.

- Você não vai falar nada? Perguntar quem sou, talvez? – Insistiu a morte.

- Acho que eu não vou acreditar, independente do que diga.

- Muito bem, muito bem. Isso dispensa a necessidade de apresentações desnecessárias. Afinal, você já viu esse filme umas tantas vezes e estou certo que me reconheceu – a horripilante figura parecia divertir-se sadicamente com seu monólogo– Você joga? – emendou ao indicar um tabuleiro de xadrez, antes escondido pelo cadáver do cavaleiro.

- Não. Quer dizer, sei muito pouco, mas não sei jogar bem.

- Bobagem! Claro que você sabe jogar, talvez não saiba as regras, mas o espírito de competidor está no seu sangue. Tenho certeza que, se não for por habilidade, por instinto darás um interessante adversário. Venha, sente-se, sente-se. Aí não, se me perdoas, prefiro jogar com as brancas, me dá mais sorte. É uma superstição tola, adquirida há muito tempo, mas hoje não consigo mais me desvencilhar dela, espero que entendas.

Pereira obedecia aos comandos calado, desconfiado daquelas palavras, tão articuladas e claras, de voz até agradável, mas que pelo olhar de raposa do dono pareciam também ardilosas e traiçoeiras.

- Pronto – disse a morte satisfeita, revelando um sorriso amarelado – movi meu primeiro peão, agora é a sua vez.

Pereira titubeou algumas vezes, em dúvida sobre qual peão avançar. Pensava impossível o que estava se desenrolando ali, não podia ser verdade, jamais. Estava convencido de que não passava de um delírio provocado pela doença. Logo acordaria, recuperaria os sentidos e seguiria com sua vida. Mas ao mesmo tempo se sentia empolgado, até mesmo excitado pelo simbolismo daquilo tudo. “Que seja uma loucura descabida, o melhor é render-me a minha própria consciência. Afinal, se estou sonhando, esse sujeito travestido de ceifador de almas sou eu mesmo, ninguém mais. Nem a morte, nem Deus, nem o Diabo, sou só eu”. Esse pensamento lhe rendeu confiança e ele empurrou adiante a peça da penúltima casa à direita, para liberar o bispo.

A partida se desenrolou lentamente, em silêncio. A decisão de Pereira de fazer frente à morte - ou ao seu próprio inconsciente, ou a quem quer que aquela figura obscura fosse ou representasse - em seus próprios termos fez aflorar-lhe um talento eternamente ignorado para o tabuleiro. Subitamente se deu conta de que conhecia as táticas de ataque e defesa, de intimidação e de acuamento, e por grande parte do jogo esteve de igual para igual. Aos poucos os peões de ambos foram ficando mais escassos e, por uma sutil distração, a morte deixou um cavalo vulnerável, rapidamente removido por uma das torres do adversário. Assim que em determinado instante, Pereira achou-se em vantagem, e seu peito retumbou inquieto, poderoso e quase certo da vitória, uma questão de tempo. Apesar da visível adversidade, a parca em nenhum momento mostrou-se preocupada. Apenas esquivava as peças mais importantes das investidas impetuosas, sacrificava alguns peões aqui e acolá e esperava, sempre com o mesmo amarelado sorriso na cara. E foi nessa mesma infindável paciência, em movimentos lentos, porém precisos dos braços, feito um padre ao dar a benção, que ela abocanhou o primeiro bispo preto. Este, por sua vez, deixou desprotegido uma torre, também rapidamente ceifada. Pereira mal teve tempo de recompor-se do golpe e já viu um de seus cavalos ser abatido pela rainha e, durante a quase eternidade que a disputa de estendeu, foi perdendo, gradualmente, peões, torre, bispo,cavalo e rainha. O inevitável xeque-mate, prolongado pela estúpida insistência de Pereira em correr com o Rei pelo tabuleiro, sempre esbarrando no fim de cada horizontal e coluna, foi proferido – puro sadismo da morte – por um frágil e unidirecional peão.

- Ah, meu amigo, que partida – a morte carregava um sorriso odioso de troça nos lábios.

Pereira, ainda desnorteado pela derrota, silenciou, contemplando o regozijo do outro. Logo falou:

- Desde o início, não tinha jeito de eu ganhar, verdade? Você sabia disso desde o início.

- Mas é claro que sim.

- Hum... Então por que você se deu ao trabalho?

- Trabalho? Não ouse chamar um esporte assim tão belo, nobre, de trabalho. Por incrível que possa parecer, mesmo sabendo que sairei vencedor no final, cada desafio se mostra particularmente instigante. Uns mais, outros menos, é verdade. Mas no geral é um bom exercício para quem, como você pode imaginar, dispõe de um bocado de tempo.

- Realmente. É difícil imaginar que para um sádico como você seja penoso fazer isso pelo esporte, por passa-tempo.

- De fa-to – contestou a morte, com cuidado para deleitar-se com todas as sílabas, pronunciando cada som vagarosamente.

- E para os perdedores? De que vale?

- Ora, seu Pereira. Não seja assim tão negativista e não queira dar-me responsabilidades que não são minhas. Isso é algo que deixo para vocês. Afinal, existe algo mais desesperador e, ao mesmo tempo, maravilhoso do que achar graça – não, graça é uma palavra para seres do meu mundo, que sejam razões, sentidos, porquês, essas palavras que vocês gostam tanto – de um jogo em que só há vencidos?

Pereira então aceitou a mão que a morte lhe estendida. Ao tocá-la, sentiu frio e veio, mais uma vez, o nada.

4. Vivo-morto

Ainda com febre e o corpo dolorido, Nicola Pereira despertou em uma cama de hospital. Entrava muito sol pela janela ao lado de seu leito, mas não o incomodava mais tanto. Estava, apesar de um pouco grogue, relativamente bem.

- Ah, o senhor despertou. Como se sente? O senhor teve um colapso... – o paciente ouvia aqueles nomes difíceis fingindo atenção. O médico se prolongou por uns quantos minutos, numa descrição pedagógica do que acontecera com o organismo de Pereira, e este assentia teatralmente com a cabeça. Finalmente, o clínico disse o que realmente interessava – descobrimos que isso foi causado por uma diabetes tardiamente revelada. O senhor tem é sorte de nunca ter passado por nada desse nível antes, poderia ter morrido. Mas não se preocupe, a partir de agora, com o tratamento correto e nada de álcool ou açúcar, vai ter uma vida saudável.

- Pois não doutor, certamente – disse Pereira com o mesmo sorriso amarelado, muito parecido ao que vira estampado na cara de seu algoz no xadrez.

domingo, 28 de março de 2010

Sobre mais essas aspas

Ora, Pedro, é lógico. A Mayumi aceitou a frustração de não ter o brinquedo sempre com ela. Quem aceita frustrações, espera, quem espera, pensa. Quem pensa, sente. Quem sente, vive o tempo, e sabe que ele está passando. Portanto, fica mais velho. (O Fazedor de Velhos, de Rodrigo Lacerda)

Melhor do que essa, só mesmo a tal frase que, numa só tacada, define no que consiste a tragédia do Rei Lear, e, quem sabe, de toda a humanidade.

Como moscas para meninos travessos, assim somos nós para os deuses; eles nos matam por diversão.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Sobre a injustiça

Hoje, nas ruas de Lisboa, Nicola Pereira presenciou uma grande injustiça. Um velho de barba cor de neve, desses que caminham inofensivos pelas ladeiras, lentamente a guardar com os olhos cada passo, foi humilhado e espancado em público por um insolente moleque. Pereira não sabe a razão da ofensa, apenas ouviu as lágrimas do ancião, que jurava nada ter feito de errado. Sua alma se encheu de ódio quando viu o agressor, que após o fato virou as costas, jogou o nariz para o alto feito um pavão rei e seguiu caminho pelas vielas lusitanas. O mais revoltante, entretanto, foi a multidão, a corja lisboeta assistindo a tudo, indignada, mas sem proferir palavra. Aos poucos todos, uns mais cedo, outros minutos depois, deram de ombros e seguiram suas vidas. Mas do que reclama Pereira, se ele mesmo se conteve a mirar os próprios joelhos?