domingo, 25 de abril de 2010

Sobre as parábolas

Vendo o filme A Dúvida recentemente, Pereira se deparou com uma interessante historieta. Não pelo conteúdo didático em si, mas por subitamente lembrar-se de sua mãe contando exatamente a mesma trama quando ele era ainda pequeno. Começa assim:

Era uma vez uma gentil anciã de olhos caridosos e querida por todos. Um dia, entretanto, ela cometeu um ato terrível. Levada por insinuações e incertezas, deu falso testemunho contra uma pessoa que pouco conhecia. Semanas depois, ao ser alertada por um amigo da terrível consequencia de suas ações, seu coração se encheu de culpa e ela decidiu recorrer à igreja por perdão. Adentrou no confessionário:

- Padre, cometi uma grande injustiça - e revelou o ocorrido.

Sentia-se extremamente oprimida pelo remorso, mas também aliviada por estar prestes a receber a remissão do pecado por meio da penitência.

- O que faço para me desculparem, senhor? - concluiu.

- Mulher desgraçada, para ti não há redenção. Teu crime é irreparável - esbravejou o padre.

Feito um martelo, o sangue da senhora começou a pulsar em desespero, num descompasso que ruborizou suas faces.

- Mas meu senhor, deve haver um modo. Por Deus, quero e estou aqui para encontrar o perdão divino.

- Bem - recomeçou o sacerdote - a redenção do Senhor já a tens, ele na sua bondade infinita te compreende e acolhe. Quanto a reparar teu erro entre os homens, talvez haja uma única maneira.

A mulher quase encostou a orelha na grade que dividia o confessionário ao meio

- Diga, padre, pelo amor de Deus fale logo.

- Espero um dia nublado e de ventos potentes, um dia em que o céu esteja tão revolto que seja evidente a cólera divina. Com um travesseiro e uma faca em mãos, suba até o campanário dessa mesma igreja. Quando estiver lá em cima, apunhale o travesseiro e deixe a ventania carregar as penas por todos os cantos - A anciã estava espantada, sem entender o objetivo do confessor - Depois desça e se preste a recolher todas as plumas, cada uma delas, sem excessão. Traga-as todas a mim.

- Mas isso é impossível, elas voariam para as partes mais distantes e eu nunca encontraria todas - retrucou a pecadora.

- Certíssimo, minha criança, mas é o que acontece quando se espalha falsidades e intrigas. Deus te perdoa em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.

domingo, 11 de abril de 2010

Sobre o quase fim de Pereira, em quatro atos

1. Morto-vivo

Apesar de ser início de setembro, aquele dia amanhecera misteriosamente frio. Os pés de Pereira estavam gelados, como se fossem feitos de vidro e pudessem se romper ao menor choque. Para deixar sua casa rumo à escola, onde lecionaria a aula inaugural de Filosofia ao nono ano, cobriu-se com uma malha de lã. Mesmo assim, como ainda sentia um frio incomodo nas juntas e músculos, decidiu resgatar a pesada casaca do armário, que passava pelo esquecimento anual de veraneio.

Ao abrir a porta e pisar na calçada, veio o espanto. Pessoas caminhavam trajando roupas leves e frescas, alguns de bermudas e camisetas, uns outros, mais formais, levavam calças e camisas de mangas curtas, visivelmente molestados pelo árido calor peninsular, tão conhecido daquele mês. Um jovem passou pelo velho agasalhado Pereira, que nessa ocasião tinha entre 55 e 60 anos, e, surpreso, pôs-se a abanar com a gola da camiseta o peito seminu, pois a simples visão daquele corpo metido em camadas e camadas de tecido o sufocava.

“Devo estar doente”, pensou enquanto apalpava as bochechas com as costas dos dedos. Sua face ardia em brasa, contrastando com as mãos gélidas e descoloridas, feito membros de um cadáver. “Talvez não seja prudente ir dar aulas hoje, devo estar com febre. Mas é o primeiro dia e já reservei o projetor para o filme. E se for algo mais sério? Que besteira! Ontem mesmo eu estava perfeitamente saudável, depois da lição retorno a casa para repousar, e pronto. Mas será que não é teimosia demais, descuido besta?” A hesitação e indecisão apoderaram-se da mente. Enquanto isso, sem se dar conta, suas pernas tomaram vida própria e o carregaram pelas ruas de Lisboa, pelo mesmo trajeto que fazia todos os dias e, por isso, dispensava qualquer nível de consciência. Quando, por fim, resolveu que estava realmente enfermo e seria aconselhável regressar, viu-se já sendo sacolejado pelo ônibus. Nem mesmo o abafado ar do interior do carro fez com que se sentisse aquecido e, em determinado momento, um calafrio lhe subiu violentamente a espinha, fazendo com que se enfiasse ainda mais dentro da gola da casaca. Foi quando notou, meio que por acaso, o edifício da escola ficando maior conforme a condução avançava. “Não tem jeito, agora tenho que ir”. Deu sinal ao motorista e desceu.

2. A aula

O colégio secundário se situava em um amplo edifício retangular de quatro andares. Um pequeno jardim além dos portões de metal, que de velhos e vacilantes rangiam escandalosos quando abriam e fechavam, dava para a entrada principal. Na portaria trabalhava a secretária, uma quarentona de nome Amália e feições carrancudas. O restante do espaço se prolongava por mais de cem metros, e em cada lado estavam dispostas salas de aula. Pereira caminhou até o final do corredor, cabisbaixo para abrigar o pescoço dentro da casaca, com a mão livre enfiada fundo no bolso, e tomou as escadarias que o levaria ao quarto andar. Diversas vezes ateve-se entre um degrau e outro para recuperar o ar e escorar-se no corrimão, fatigado. Antes de entrar na terceira sala à esquerda, permaneceu por instantes imóvel ao lado da porta, como um gladiador a reunir forças e coragem diante da arena. Por fim respirou fundo, enxugou a testa com a manga aveludada e entrou.

As salas eram espaçosas e as paredes, altas. Havia três amplas janelas no lado oposto à porta, que dava para a quadra de esportes. Eram vidraças sustentadas por firmes esquadrias de ferro, que iluminavam o ambiente por completo, tornando as lâmpadas suspensas no teto inúteis. A intensidade dos raios solares daquele dia de verão infernal era absorvida pelos vidros, e a sala ficou com temperatura de uma estufa. Pereira depositou a maleta de couro em sua cadeira, apoiou ambos punhos sobre a mesa e dobrou os braços, ficando em posição de flexão. Esboçou um tímido e quase incompreensível bom dia a turma e explicou que todos assistiriam ao filme O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, como primeira atividade do ano. Claro que o professor havia preparado uma introdução ao ensino da Filosofia, para ser apresentada antes da projeção: o que estudariam naquele ano, porque havia escolhido esse filme para ilustrar algumas das questões do cronograma, etc. Mas o inexplicável frio que sentia enfraquecia o corpo, seus olhos salpicavam doloridos e uma estranha irritação aquecia as bochechas, ao mesmo tempo em que sentia os pulsos e pés enfiados em baldes de gelo. Além do mais, aquela luminosidade excessiva agredia as pálpebras, turvando a visão e outros sentidos, e o velho não sabia ao certo o que ouvia, cheirava ou enxergava. Ordenou logo que fechassem as cortinas, entregou o DVD à aluna mais próxima - que se espantou com a expressão de calvário do mestre - e disse: “coloque isso no projetor, depois do filme eu explico melhor”.

Os mais de trinta alunos assistiram intrigados às primeiras cenas do filme. Não pelo enredo em si, pois se mostravam visivelmente desinteressados com o encontro do cavaleiro medieval e a morte em uma praia rochosa da Suécia. Estavam todos com os olhos fixos naquele excêntrico professor de Filosofia, que a grande maioria não conhecia e apenas alguns se lembravam de tê-lo visto pelos corredores em anos anteriores. Um grupo de cinco garotos começou a rir baixo do homem sentado na mesa diante de todos, com os cotovelos sustentando todo o peso do corpo e as mãos coladas umas às outras, para vencer a temperatura, mas foram logo censurados por um sofrido “atenção!” de Pereira. Assim, com todos apreensivos, seguiu a trama: o cavaleiro e a parca começam o jogo de xadrez; ele e seu escudeiro perambulam de povoado em povoado, sempre rodeados pelo morticínio causado pela peste; encontra o casal de atores, quando vê um resquício de vida e felicidade em meio às almas eternamente flageladas pela fome, morte e inquisição. Na medida em que o filme se aproximava do final, com a trupe atravessando a passos cuidadosos a densa floresta, Pereira sentiu que um repentino mal-estar começou a formar-se também em seu estômago. A febre aumentara e ele escondeu o rosto entre as palmas, momento em que se deu conta de que sua testa se desmanchava em suor. A baixíssima sensação térmica agora não atingia apenas as mãos e os pés, mas também o restante dos braços e pernas. Quando o casal de atores armou acampamento dentro da carroça, ao lado do cavaleiro e dos demais, os olhos de Pereira lacrimejavam descontroladamente. Um desespero foi se apossando de seu espírito (nunca havia passado por nada parecido), e o medo era tamanho que se confundia com o enjôo que molestava suas entranhas, com o arder de sua face, o salpicar dos olhos e a sensação de debilidade dos membros. Pereira então mirou uma última vez a tela - exatamente no momento em que o cavaleiro arremessa o tabuleiro aos ares, a fim de distrair a morte e permitir que o casal de atores fuja -, sentiu que algo amargo lhe envolvia o estômago e se preparava para subir até as narinas, teve um fortíssimo calafrio que enrijeceu seus nervos, viu a luz do projetor anestesiar a visão, perdeu os sentidos e se esfacelou no chão de madeira, para gritos de horror dos alunos

3. O jogo e um diálogo

De tanto banhar o rosto, o sal da água do mar já ressecava os lábios de Pereira. Aos poucos foi recuperando a consciência: primeiro enxergou borrões cinzas tomarem forma de escarpas montanhosas, sentiu a áspera textura de areias e pedras com as pontas dos dedos, e ouviu a suave brisa acariciar sua pele. Pôs-se em pé. Estava em meio a uma praia rochosa, dessas que só se encontram em regiões setentrionais e muito distantes de Portugal. O céu estava encoberto por pesadas nuvens enegrecidas, e elas produziam trovões estrondosos, o que agitava violentamente o mar. Era, enfim, uma paisagem muito semelhante, se não idêntica, a cena inicial do filme de Bergman. O silvo do vento, os céus em ressaca e a ausência de sol levavam a crer que fazia um frio agudo, mas curiosamente Pereira não se sentia mais incomodado. Tampouco fazia calor; na verdade não sabia bem ao certo o que sentia, nem se sentia alguma coisa de fato. A alguns metros, reconheceu de costas, debruçado sobre si mesmo e encapuzado, o cavaleiro medieval, que tinha na capa um vistoso bordado da cruz de malta. Pereira aproximou-se cauteloso e, ao tocar o ombro revestido pela cota de malha, o templário deslizou para fora da pedra e caiu inerte no chão, revelando que dentro do capuz não havia nada além de um crânio asqueroso e carcomido. O português não teve tempo de gritar, muito menos de afastar-se num salto, pois uma voz cadenciada e grave chamava por seu nome.

- Olá – Pereira atendeu à saudação e se deparou com a morte do filme, um homem alto e esguio, metido numa comprida batina negra e com uma face levemente roliça, mas totalmente esbranquiçada. A incredulidade confessa fez com que o velho se mantivesse em silêncio por alguns segundos.

- Você não vai falar nada? Perguntar quem sou, talvez? – Insistiu a morte.

- Acho que eu não vou acreditar, independente do que diga.

- Muito bem, muito bem. Isso dispensa a necessidade de apresentações desnecessárias. Afinal, você já viu esse filme umas tantas vezes e estou certo que me reconheceu – a horripilante figura parecia divertir-se sadicamente com seu monólogo– Você joga? – emendou ao indicar um tabuleiro de xadrez, antes escondido pelo cadáver do cavaleiro.

- Não. Quer dizer, sei muito pouco, mas não sei jogar bem.

- Bobagem! Claro que você sabe jogar, talvez não saiba as regras, mas o espírito de competidor está no seu sangue. Tenho certeza que, se não for por habilidade, por instinto darás um interessante adversário. Venha, sente-se, sente-se. Aí não, se me perdoas, prefiro jogar com as brancas, me dá mais sorte. É uma superstição tola, adquirida há muito tempo, mas hoje não consigo mais me desvencilhar dela, espero que entendas.

Pereira obedecia aos comandos calado, desconfiado daquelas palavras, tão articuladas e claras, de voz até agradável, mas que pelo olhar de raposa do dono pareciam também ardilosas e traiçoeiras.

- Pronto – disse a morte satisfeita, revelando um sorriso amarelado – movi meu primeiro peão, agora é a sua vez.

Pereira titubeou algumas vezes, em dúvida sobre qual peão avançar. Pensava impossível o que estava se desenrolando ali, não podia ser verdade, jamais. Estava convencido de que não passava de um delírio provocado pela doença. Logo acordaria, recuperaria os sentidos e seguiria com sua vida. Mas ao mesmo tempo se sentia empolgado, até mesmo excitado pelo simbolismo daquilo tudo. “Que seja uma loucura descabida, o melhor é render-me a minha própria consciência. Afinal, se estou sonhando, esse sujeito travestido de ceifador de almas sou eu mesmo, ninguém mais. Nem a morte, nem Deus, nem o Diabo, sou só eu”. Esse pensamento lhe rendeu confiança e ele empurrou adiante a peça da penúltima casa à direita, para liberar o bispo.

A partida se desenrolou lentamente, em silêncio. A decisão de Pereira de fazer frente à morte - ou ao seu próprio inconsciente, ou a quem quer que aquela figura obscura fosse ou representasse - em seus próprios termos fez aflorar-lhe um talento eternamente ignorado para o tabuleiro. Subitamente se deu conta de que conhecia as táticas de ataque e defesa, de intimidação e de acuamento, e por grande parte do jogo esteve de igual para igual. Aos poucos os peões de ambos foram ficando mais escassos e, por uma sutil distração, a morte deixou um cavalo vulnerável, rapidamente removido por uma das torres do adversário. Assim que em determinado instante, Pereira achou-se em vantagem, e seu peito retumbou inquieto, poderoso e quase certo da vitória, uma questão de tempo. Apesar da visível adversidade, a parca em nenhum momento mostrou-se preocupada. Apenas esquivava as peças mais importantes das investidas impetuosas, sacrificava alguns peões aqui e acolá e esperava, sempre com o mesmo amarelado sorriso na cara. E foi nessa mesma infindável paciência, em movimentos lentos, porém precisos dos braços, feito um padre ao dar a benção, que ela abocanhou o primeiro bispo preto. Este, por sua vez, deixou desprotegido uma torre, também rapidamente ceifada. Pereira mal teve tempo de recompor-se do golpe e já viu um de seus cavalos ser abatido pela rainha e, durante a quase eternidade que a disputa de estendeu, foi perdendo, gradualmente, peões, torre, bispo,cavalo e rainha. O inevitável xeque-mate, prolongado pela estúpida insistência de Pereira em correr com o Rei pelo tabuleiro, sempre esbarrando no fim de cada horizontal e coluna, foi proferido – puro sadismo da morte – por um frágil e unidirecional peão.

- Ah, meu amigo, que partida – a morte carregava um sorriso odioso de troça nos lábios.

Pereira, ainda desnorteado pela derrota, silenciou, contemplando o regozijo do outro. Logo falou:

- Desde o início, não tinha jeito de eu ganhar, verdade? Você sabia disso desde o início.

- Mas é claro que sim.

- Hum... Então por que você se deu ao trabalho?

- Trabalho? Não ouse chamar um esporte assim tão belo, nobre, de trabalho. Por incrível que possa parecer, mesmo sabendo que sairei vencedor no final, cada desafio se mostra particularmente instigante. Uns mais, outros menos, é verdade. Mas no geral é um bom exercício para quem, como você pode imaginar, dispõe de um bocado de tempo.

- Realmente. É difícil imaginar que para um sádico como você seja penoso fazer isso pelo esporte, por passa-tempo.

- De fa-to – contestou a morte, com cuidado para deleitar-se com todas as sílabas, pronunciando cada som vagarosamente.

- E para os perdedores? De que vale?

- Ora, seu Pereira. Não seja assim tão negativista e não queira dar-me responsabilidades que não são minhas. Isso é algo que deixo para vocês. Afinal, existe algo mais desesperador e, ao mesmo tempo, maravilhoso do que achar graça – não, graça é uma palavra para seres do meu mundo, que sejam razões, sentidos, porquês, essas palavras que vocês gostam tanto – de um jogo em que só há vencidos?

Pereira então aceitou a mão que a morte lhe estendida. Ao tocá-la, sentiu frio e veio, mais uma vez, o nada.

4. Vivo-morto

Ainda com febre e o corpo dolorido, Nicola Pereira despertou em uma cama de hospital. Entrava muito sol pela janela ao lado de seu leito, mas não o incomodava mais tanto. Estava, apesar de um pouco grogue, relativamente bem.

- Ah, o senhor despertou. Como se sente? O senhor teve um colapso... – o paciente ouvia aqueles nomes difíceis fingindo atenção. O médico se prolongou por uns quantos minutos, numa descrição pedagógica do que acontecera com o organismo de Pereira, e este assentia teatralmente com a cabeça. Finalmente, o clínico disse o que realmente interessava – descobrimos que isso foi causado por uma diabetes tardiamente revelada. O senhor tem é sorte de nunca ter passado por nada desse nível antes, poderia ter morrido. Mas não se preocupe, a partir de agora, com o tratamento correto e nada de álcool ou açúcar, vai ter uma vida saudável.

- Pois não doutor, certamente – disse Pereira com o mesmo sorriso amarelado, muito parecido ao que vira estampado na cara de seu algoz no xadrez.