domingo, 28 de março de 2010

Sobre mais essas aspas

Ora, Pedro, é lógico. A Mayumi aceitou a frustração de não ter o brinquedo sempre com ela. Quem aceita frustrações, espera, quem espera, pensa. Quem pensa, sente. Quem sente, vive o tempo, e sabe que ele está passando. Portanto, fica mais velho. (O Fazedor de Velhos, de Rodrigo Lacerda)

Melhor do que essa, só mesmo a tal frase que, numa só tacada, define no que consiste a tragédia do Rei Lear, e, quem sabe, de toda a humanidade.

Como moscas para meninos travessos, assim somos nós para os deuses; eles nos matam por diversão.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Sobre a injustiça

Hoje, nas ruas de Lisboa, Nicola Pereira presenciou uma grande injustiça. Um velho de barba cor de neve, desses que caminham inofensivos pelas ladeiras, lentamente a guardar com os olhos cada passo, foi humilhado e espancado em público por um insolente moleque. Pereira não sabe a razão da ofensa, apenas ouviu as lágrimas do ancião, que jurava nada ter feito de errado. Sua alma se encheu de ódio quando viu o agressor, que após o fato virou as costas, jogou o nariz para o alto feito um pavão rei e seguiu caminho pelas vielas lusitanas. O mais revoltante, entretanto, foi a multidão, a corja lisboeta assistindo a tudo, indignada, mas sem proferir palavra. Aos poucos todos, uns mais cedo, outros minutos depois, deram de ombros e seguiram suas vidas. Mas do que reclama Pereira, se ele mesmo se conteve a mirar os próprios joelhos?

quinta-feira, 4 de março de 2010

Sobre o erotismo

Sostuvo Pereira que este talvez seja o mais autobiográfico post de seu blog, e por isso talvez seja também o mais desinteressante.

O dia tinha sido exaustivo. Horas e horas apoiado por sobre os cotovelos lendo e relendo os exames de seus alunos, uma pilha de papéis com garranchos azuis que iam sendo coloridos de vermelho a cada novo nome. Dentre as atribuições de um professor, avaliar provas é a mais enfadonha, a mais maçante, algo que faz um se sentir preso numa obrigação burocrática sufocante. Quando saiu da escola, já pelas tantas da noite, tinha os músculos contraídos pelo cansaço e sua cabeça latejava dolorida, como se houvesse algo se expandindo violentamente ali dentro. A primeira coisa que fez, mal tinha deixado os portões, foi buscar no bolso do sobretudo o maço de cigarro. Normalmente evitava fumar nas proximidades da escola, passava mal exemplo às crianças, mas desta vez nada importava, precisava relaxar.

Sua casa era distante uns poucos quilômetros dali. Ele usava a linha de ônibus que passava na esquina e saltava vinte minutos depois. Se tivesse sorte, sentava em lugar próximo a janela para observar despretensioso as ruas. Primeiro a praça do Marechal, com a imponente estátua vigilante no centro, abrigo de indigentes e mendigos; o viaduto, quando o ônibus dava leves solavancos devido à via esburacada, para, por fim, dobrar a esquerda na Rua das Benditas Senhoras, em frente ao número 15, uma típica livraria chamada O Fingidor. As vitrines eram emolduradas em madeira e havia uma quase que invisível porta à esquerda, que dava acesso aos dois apartamentos do segundo andar. As paredes do edifício eram revestidas de esverdejantes trepadeiras, que escalavam e enlaçavam com seus robustos dedos os tijolinhos cor de barro. A varanda de seu charmoso piso havia sido quase que engolida pela cascata viva de folhas e caules que despencava do terraço.

Mas naquela noite, o simples pensar em entrar num abafado ônibus remexeu com seu estômago. Era melhor andar por uma hora e tentar aliviar a tensão com cigarros e passos desacelerados. Foram cinco bitucas arremessadas ao chão, mas mesmo assim não conseguiu sentir-se melhor. Seria uma noite de cão. Percorreu o caminho num frenesi de pensamentos que se sobrepunham uns aos outros: como seus trabalho era pouco gratificante, em todos os sentidos, como o recente divórcio estava dividindo os poucos bens que tinha, como a solidão amargava suas madrugadas, como sua vida era, já aos 40, vazia. Quando girou a chave no portão que dava para a escadaria, seguiu o protocolo e conferiu a caixa dos correios. Havia ali dentro um pequeno envelope, não maior do que um caderno, com bem uns sete selos dispostos no lado do destinatário, todos com imagens do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar impressas. Seu sangue começou a ferver, não precisaria nem ler o endereço para saber quem o havia enviado.

O livro dentro do envelope, Paris é uma Festa, de Ernest Hemingway, era um presente da Beatriz, uma brasileira que conhecera há três anos numa viagem. Foi uma dessas relações estranhas, mal se conheceram e, por uma empatia imediata, ou por uma carência de ambos, se tornaram amantes. Passavam as noites e manhãs trancafiados no apartamento dela na Lapa, e só saiam às tardes para almoçar em algum restaurante próximo. Nas duas semanas que ele permaneceu no Rio, não visitou nenhum ponto turístico, simplesmente não compareceu ao congresso de Literatura, motivo de sua visita, e viu a praia de Copacabana apenas da janelinha do avião. Era como se aquele quarteirão da Lapa contivesse tudo o que ele precisava para viver e ser feliz. A Lapa era um refúgio muito bem guarnecido de tudo o que Portugal representava, país para o qual regressou pouco depois, porque lá estava a família, o trabalho, a esposa e o filho, certamente mais importantes do que sua paz criminosa no estrangeiro.

Sob a mórbida luz amarela de uma lamparina, leu paciente a carta enfiada entre as páginas do livro. “Nicola, logo na dedicatória o autor diz o seguinte: se você teve a sorte de viver em Paris quando jovem, Paris fará parte da sua vida para sempre, porque Paris é uma festa. Acho que é mais ou menos isso. Não sei por que ao certo pensei em você ao lê-lo, talvez seja pelo meu confesso fascínio por Lisboa. Tomei a liberdade de trocar a cidade e tudo pareceu se encaixar do mesmo modo. Aqui no Brasil as coisas seguem iguais, e sinto falta de não ouvir notícias tuas de vez em quando. Com carinho, tua amiga, Beatriz.”

“Há poucas coisa no mundo tão eróticas quanto uma carta”, pensou enquanto roçava os dedos pelo papel. Subitamente, sua mente deixou de torturá-lo. “O cuidado na embalagem, a escolha do papel, a letra, que pelas curvas dos ‘Fs’ e dos ‘Gs’ denunciam a identidade da autora. O tempo necessário para cruzar o Atlântico, as rasuras nas palavras indesejadas que escaparam do pensamento por um descuido dos dedos, não tão rápidos. Como receber uma carta assim, aparentemente tão inocente, nos enche de vida”.

Ao lê-la pela décima vez, socou a mesa da sala e bradou decido: “Vou fazer uma loucura!”. Estava diante de si a solução para sua amargura, para sua tristeza e para o vazio de sua existência. Puxou da gaveta o último informe do banco. “Mil Euros, isso dá para a passagem e para umas semanas de estadia. Mas quanto tempo ficar? Não sei. Talvez dois meses, talvez nunca mais volte. É, o melhor é não retornar mesmo a essa cidade de merda. Mas e o que tenho aqui? Não importa, vendo tudo e me mudo para lá. Mas não há tempo, isso tem que ser feito o mais rápido possível. É verdade, deixo tudo como está e desapareço. Mas ela vive só? Não disse nada na carta, é possível que seja só um gracejo. E se ela estiver com alguém? Aos diabos, mesmo que não termine com ela, serei mais feliz no Brasil, longe do trabalho, das cobranças, do meu passado”.

E assim foi dormir, num êxtase de espírito, fazendo planos para sua nova vida a milhares de quilômetros de distancia, onde seria pobre e feliz, como Hemingway o fora em Paris. Adormeceu convencido de que era essa a única solução para seus problemas e chegou a jurar para si mesmo que a levaria adiante.

Acordou horas depois com a carta ainda entre os dedos e o informe do banco estirado em seu peito. No chão, anotações com preços de passagens e de hotéis cariocas de terceira categoria. Demorou alguns segundos para entender que aquela papelada era fruto do seu plano de fuga. De início, até chegou a ameaçar discar o número da companhia aérea, mas logo o abateu a consciência de que deixaria um emprego, um ainda adolescente filho, uma recém separada esposa, a opinião de toda uma vizinhança, dos alunos e dos outros professores do colégio, que tanto o estimavam. Com um risinho típico dos conformistas nos lábios, recolheu as folhas espalhadas pelo tapete, as amassou e atirou tudo na lixeira. Até pensou em queimar a carta, para certificar-se de que semelhante ideia nunca lhe ocorreria novamente. “Que devaneio, que falta de juízo e razão!”

E ainda não eram dez da manhã quando Nicola Pereira sentou-se mais uma vez em sua mesa, e passou a pintar de vermelho as provas da sexta série com setas, círculos, arcos e comentários quase ilegíveis por sobre o papel branco.