terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Sobre como matam gigantes

Sostuvo Pereira que agora, após o quarto post em seu blog, faltava algo. Passou noites em claro tentando descobrir o que era, período no qual acessou inúmeras vezes o blog e leu e releu cada um dos textos publicados anteriormente. Por fim, decidiu que faltava uma apresentação aos leitores da sua infância, sobre suas férias naquela despovoada cidade do interior português. Num esforço para recordar de qualquer acontecimento significativo sobre seus primeiros anos de vida, surgiu-lhe a imagem de um pardal em queda livre para depois se arrebentar contra o solo. Tendo em mente que em lembranças assim, longínquas, pouco realmente aconteceu e muito se inventa, veio com o seguinte relato.
Fui daquelas crianças nascidas no interior mas criadas na capital. Retornava todas as férias à cidade com pouco mais de mil habitantes, à casa de meus avós. Lá, logo no primeiro dia, metia-me no pasto junto com a molecada da cidade para andar de bicicleta, subir nas tábuas da mangueira e provocar os bezerros, apanhar castanhas no pé e atirar mamonas uns nos outros.

Éramos cinco ou seis. Eu era o único que saía para brincar de tênis, o último a conseguir subir no pé de manga, o que deixava a casa com as roupas mais limpas e novas e o que retornava mais imundo, devido a tombos e tropeços no lamaçal. Coisa de moleque de cidade em meio aos que viveram no campo por toda a vida. Certamente minha falta de jeito era motivo de piadas e troças para os outros meninos, mas acho que havia um perdão geral por tratar-se do neto do dono do sítio, onde todas as brincadeiras aconteciam.

Uma das coisas que mais gostávamos de fazer era caçar passarinhos com estilingues. Cada um trazia o seu de casa, fosse comprado, fosse de fabricação própria. Eu usava um feito por meu avô, de forquilha muito bem escolhida e trabalhada, com a tripa de mico elástica e muito grossa. Ele sempre usava galhos das árvores mais resistentes e que formavam ângulos perfeitos.

Enchíamos os bolsos de pedregulhos e sumíamos com nossas armas. Os principais alvos eram os pardais em repouso nos fios elétricos e pombas escondidas nas vigas de um grande armazém de espigas de milho e sacas de farinha. Meus amigos passavam toda a semana praticando e o sábado e domingo eram como exibições de gala. Eu, por outro lado, apenas tinha a oportunidade de treinar a pontaria nos próprios finais de semana e meus disparos passavam longe dos alvos e espantavam as ninhadas. Muitas vezes as pedras chocavam-se contra os postes de eletricidade e provocam a fuga dos cobiçados pássaros. A verdade é que eu era, em muitas ocasiões, a razão de caçadas em vão.

Por isso, os outros meninos bolaram uma estratégia que garantia o campo de caça e bons resultados ao mesmo tempo. Aproximávamo-nos do armazém sorrateiramente e eu ficava encarregado de disparar uma pedra contra o telhado, o que não era nem de longe difícil. Eu apenas cerrava com força os dentes, fechava um dos olhos para fazer a pontaria e estirava o máximo que pudesse a tripa de mico. Quando o pedregulho ricocheteava contra a telha, as pombas alçavam voo amedrontadas, mas devido ao grande número tentando sair pelos vãos do armazém ao mesmo tempo, elas permaneciam por poucos segundos como alvos fáceis, umas vinte voando desesperadas a meia altura. Era quando a molecada saltava da grama e, como um pelotão de fuzilamento, atirava pedras e mais pedras numa multidão de pombas cinzentas. Normalmente tombavam quatro ou cinco, com seus pescoços retorcidos e asas quebradas por sobre os sacos de farinha e espigas de milho.

Após a quarta execução no armazém, as pombas pararam de aparecer, pelo menos no número que eram anteriormente. Novamente as expedições de caça iam por terra cada vez que eu tentava acertar algum pardal nos fios elétricos. Foi quando descobrimos o Júnior. Estávamos na horta da minha avó, a uns trinta metros de um alto pé de manga. Acima da folhagem, em um dos mais elevados galhos, havia pousado a pouco um pardal, desses enormes. Era preciso ser um maestro para abater o animal daquela distância. Júnior era quatro anos mais velho do que eu e já trabalhava transportando encomendas para uma padaria da cidade. Andava sempre sem camisa e sua pele era extremamente escura, de um negro denso. Ele tomou meu estilingue nas mãos e escolheu um minúsculo pedregulho, menor do que uma bola de gude. Flexionou os braços, fez pontaria com o olho direito e jogou a língua para fora dos beiços. Quando a tripa de mico, de tão estirada, já ultrapassava a linha de sua orelha e estava a ponto de romper-se, ouviu-se um silvo agudo do ar sendo cortado e a tripa contraiu-se. O pequeno chumbinho atingiu certeiro o peito estufado do pardal, que ao cair, frouxo, produziu um barulho bem semelhante ao de uma manga quando despenca do pé de madura. Corremos todos, fora um tiro perfeito. Júnior foi o último a chegar e recebeu votos de admiração de todos. Ele tomou o pássaro já morto nas mãos e lambuzou o estilingue no sangue do animal. “Pronto, agora o estilingue ‘tá’ benzido e pardal ‘ocê’ não erra mais”.

A partir de então, não falamos em outra coisa a não ser no disparo de Júnior, que se tornou o mais respeitado da turma. Fizemos conhecido seu feito por onde passamos, dos trabalhadores da fábrica de farinha de mandioca a cada negociante da rua onde se enfileiravam umas poucas lojas de roupas e calçados, além de um supermercado, basicamente todo o comércio que havia por ali. Atravessávamos as ruas em bando e encenávamos o abate do pardal para as crianças mais jovens agrupadas na praça, que faziam caretas de espanto quando as tripas de mico se retraiam com violência e as pedras se perdiam de vista no azul do céu. O Júnior virou um herói, e fizemos tanto estardalhaço que certa vez ele até ganhou um par de botinas de um dos lojistas. Acho que o Júnior foi, por um tempo, uma espécie de celebridade entre as crianças da cidade, e nós acreditávamos que seria cultuada e relembrada para sempre. Não foi o que aconteceu. Alguns meses após tudo isso, ele parou de freqüentar as caçadas. Aparecia na casa de meus avós com freqüência, mas para tratar de outros assuntos: recolher engradados vazios, empilhar sacas de farinha de mandioca sobre os ombros, receber aos domingos e às vezes pedir adiantamento na quarta-feira. Aos 14 anos, Júnior, que havia crescido entre nós caçando pássaros e trepando nos pés de jabuticaba, se transformara compulsoriamente em algo que eu não conseguia entender, num adulto. Não demorou para que o famoso disparo fosse esquecido.

Quase dez anos depois, quando não havia mais estilingues, nem bezerros assustados, ou mesmo pés de mamona, ou seja, quando o mundo era bem mais desinteressante, o revi. Era noite e eu estava estirado na rede da varanda. A campainha tocou, surgiu diante de mim um Júnior de 25 anos, quase o dobro de meu tamanho, um gigante negro que impunha respeito a qualquer ambiente. Mas, quando saiu da penumbra, vi que era também um Júnior fatigado, de olhos e semblante cansados. Me contou que era funcionário de uma transportadora de uma cidade próxima, e passava as semanas carregando e descarregando caminhões com sacas e mais sacas. Vez por outra, enquanto conversávamos, ele levava as mãos aos ombros, massageando-os para aliviar uma constante dor muscular que “incomodava já há alguns anos”. Era um Júnior envelhecido, talvez até mesmo atordoado pelas dificuldades que a vida o impusera: preto, pobre, analfabeto. Nada perto do moleque que um dia deslumbrara a todos com o mais certeiro abate de pardal que aquela cidade já vira e que fora, mesmo que por poucos meses, seu cidadão mais badalado. Nos dias seguintes não pude fazer nada além de pensar: a vida, pouco a pouco, pode muito bem apagar o que há de melhor nas pessoas.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Sobre essas aspas

Há mais ou menos vinte anos, quando recebeu a notícia de que seria pai, logo ele, tão jovem e desprovido de recursos, Pereira enfrentou dias e dias sombrios de reclusão. Estava perturbado por todas as implicações que a paternidade lhe traria, todas as privações e responsabilidades. Em um ato de desespero, correu a livraria mais próxima em busca de um desses autores de auto ajuda. Estava em busca de uma luz, uns poucos parágrafos esclarecedores vindos de títulos como Jovens Pais: passo a passo para superar desafios, ou mesmo Como lidar com Júnior, um guia para entender a relação pais e filhos. Para seu quase que total desespero, nada o satisfez. As mais de cento e cinquenta páginas que leu, vindas de bem uns quinze títulos, lhe pareceram um tanto exageradas. Em suma, pregavam o total sacrifício dos pais com as crias, e isto, Pereira sabia que não teria condições de realizar. A satisfação, e o tão esperado momento revelador que viria por delinear sua filosofia de pai para com seus filhos pelo resto da vida, vieram com umas poucas palavras grafadas nas orelhas de Os irmãos Karamázov (Editora 34), que sabe-se lá por que diabos Pereira se deu ao trabalho de ler. Segue o texto, com os mais sinceros votos de Pereira para que sirva de guia a muitos pais.

“Não está pedindo dinheiro, mas seja como for não vai receber um tostão de mim. Eu, meu querido Alieksiêi Fiódorovitch, tenho a intenção de viver o máximo que puder no mundo, saibam vocês disto, e por isso preciso de cada copeque, e quanto mais eu viver tanto mais esse copeque me será necessário. Por enquanto ainda sou um homem, apesar de tudo, tenho apenas cinquenta e cinco anos, mas ainda quero permanecer uns vinte no rol dos homens, porque vou envelhecer, ficar um trapo e elas não vão querer vir à minha casa de boa vontade, e é por isso que vou precisar de um dinheirinho. É por isso que venho juntando cada vez mais e mais só para mim, meu amável Alieksiêi Fiódorovitch, que fiquem vocês sabendo, porque quero viver até o fim em minha sujeira, fiquem vocês sabendo. Na imundice é que é mais doce: todos falam mal dela, mas nela todos vivem, só que às escondidas, enquanto eu sou transparente. Pois foi por essa minha simplicidade que todos os sujos investiram contra mim. Já para o teu paraíso, Alieksiêi Fiódorovitch, não quero ir, fica tu sabendo, e para um homem direito é até indecente ir para o teu paraíso, se é que ele existe mesmo. A meu ver, a pessoa dorme e não acorda mais, descobre que não existe nada; lembrem-se de mim se quiserem, e se não quiserem o diabo que os carregue. Eis a minha filosofia.”

Fiódor Pávlovitch Karamázov

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Sobre a ideia de Pereira

Sostuvo Pereira que lá pelas tantas do mês de dezembro, quando o ano já é quase passado e um qualquer começa a ponderar aquilo que foi e aquilo que não foi nos últimos 365 dias e seis horas, uma ideia, mais ou menos assim, começou a formar-se naquela mente lusitana.

Antes não passava de um tímido e reprimido pensamento. Um fio, entre tantos outros, que vez por outra se mostrava presente, vivo, apesar de Pereira nunca o levar muito a sério. Era uma ideia vulgar que arrancava alguns risos quando se flagrava pensando nela, mas tão somente isso, nada mais.

Não se deu conta de que a cada vez que acariciava sua mente, a tal ideia semeava o solo, como uma abelha cheia de pólen. Daí que lá nas profundezas, em algum lugar escuro e úmido, foram crescendo raízes que com seus dedos robustos atravessavam a terra. Elas iam se agarrando em pedras e quando topavam com outras raízes, de outras ideias mais sensatas, as abraçavam. Logo, aquela flor - outrora uma sutil ideia - começou a germinar e quando ainda era um indício de vida, já tinha se enraizado de tal maneira e com tamanha violência que era impossível arrancá-la de dentro de Pereira.

E a ideia começou a florescer. Ao passo que seu caule subia numa lenta, porém incessante dança, ela ia ganhando força, cada vez menos vulgar e mais plausível. Quando nasceram as primeiras pétalas vermelho latejante, ela já era uma possibilidade e Pereira já se remoía internamente para encontrar a melhor maneira de realizá-la.

Quando, por algum milagre, Pereira era atingido por um surto de razão e percebia o absurdo de seus planos fantasiosos, do perigo daquela flor se expandindo impunemente, tentava inutilmente afugentá-la, extirpá-la de suas entranhas. Mas as raízes, de tão firmes, não cediam. Além de tudo, seus ramos já tinham se enlaçado com outras raízes de outras ideias - algumas igualmente desvairadas, outras concretas e razoáveis - que arrancar uma flor que fosse significaria danos a muitas outras, ideias, e, portanto, à própria existência.

Finalmente, de tão forte e imponente, aquela planta, antes nada além de um suspiro, que se fez pólen, para virar sêmen, raiz e seiva, era para Pereira a única certeza inegável e irepreensível, uma verdade absoluta que dentre as loucuras daquele campo florido, o campo de Pereira, se sobrepunha a própria morte. Afinal, qual o peso da morte no alvorecer da juventude, aos vinte e pico, quando posta cara a cara à representação máxima da vida? Mas como sostuvo Pereira antes, é tudo só uma ideia.





domingo, 6 de dezembro de 2009

Sobre Pereira


Sostuvo
Pereira, após o tratamento nas fontes térmicas do Dr. Cardoso, que seu novo "eu" dominante poderia até mesmo tomar o controle. Entretanto, em hipótese alguma deixaria de falar com o retrato de sua falecida esposa, aquela "choca".

Para o post inaugural, Pereira ponderou sobre o conteúdo da primeira mensagem. Sem nada de original em mente - e levando em conta que já passava das duas da madrugada - entrou em seu quarto e vasculhou gavetas em busca de uns textos antigos, manuscritos há mais de ano e extremamente questionáveis quanto a qualquer qualidade literária. Achou, por final, um curto conto sobre um atropelamento em São Paulo, que começa mais ou menos assim:

No dia em que a estudante Anna Lopes, 21 anos, morreria, José Francisco, graduando em fotografia, acordou às oito da manhã. Olhou o despertador e, ao ver os ponteiros naquele ângulo, muito mais aberto do que se estivessem marcando sete horas e dez minutos, saltou da cama num susto. Neste mesmo instante, o policial militar Evaristo Gomes, de 42 anos, saudou seu superior, tenente Guilherme Dias, ao entrar na 23ª DP policial de Perdizes. Não muito longe dali, o porteiro Fernando Azevedo, responsável por um condomínio na avenida Paulista, informou ao morador Ricardo Andrade, jornalista de 28 anos, que a LDU goleara o Fluminense por cinco a um na noite anterior.


Nenhuma das personagens acima conhecia Anna, muito menos sabia que, ao meio dia e dez daquele fatídico 13 de novembro, no cruzamento da Consolação com a Paulista, ela morreria atropelada. Às oito e quarenta e cinco, Andrade entrou na redação da revista X, da qual é editor, e quase que deitou-se em sua desconfortável cadeira, de modo que apenas os ombros e pescoço não ficaram encobertos pela mesa. Dez minutos depois, José Francisco irrompeu ofegante na classe de Memória Fotográfica, desculpando-se pelo atraso de trinta minutos à professora, que nada fez senão olhá-lo com reprovação. Evaristo Gomes, por sua vez, terminou, às nove horas e dois minutos, de reportar a ronda realizada na noite anterior ao tenente Dias. Vinte minutos antes que tudo isso ocorresse, mais precisamente às oito e vinte e cinco, Anna Lopes, enquanto rumana para a faculdade, acionou com violência a buzina de seu carro, pois fora fechada por um motorista em plena marginal Pinheiros.


Às onze horas em ponto, o tenente Dias bateu na porta da sala de Evaristo Gomes, que arquivava os boletins de ocorrências registrados pela DP. "Você vai ter de me levar a academia da USP, surgiu uma reunião de última hora".Anna Lopes, neste instante, dividia as tarefas de um projeto de pesquisa com uma colega. Anna ficou encarregada de entrevistar algumas pessoas na avenida Paulista. O tema? Estresse no trânsito de São Paulo. Ricardo Andrade estava esparramado em sua cadeira de trabalho, às onze horas e trinta minutos. Ele lutava contra uma ininterrupta dor de cabeça, ressaca da festa que dera em seu apartamento na noite do dia 12. Ainda às onze horas e vinte minutos, José Francisco, que matara a segunda aula do dia, pegou um ônibus na avenida Francisco Matarazzo. Ele tinha uma entrevista de emprego na avenida Rebouças com a Sumaré em vinte minutos. Novamente, estava atrasado.


Eram dez para o meio dia quando Anna Lopes saiu de sua faculdade, na parte baixa da rua da Consolação, munida de gravador e um bloco de notas. Normalmente, ela faria o percurso até a Paulista com seu carro, mas naquela sexta-feira, por alguma razão desconhecida, se sentia disposta o suficiente para uma caminhada. O ônibus em que estava José Francisco entrou, três minutos antes, na avenida Angélica. Isso significa que, se a avenida estivesse desobstruída, o motorista Rodolfo Dias, vizinho do vigilante Azevedo no bairro de Perus e sem nenhum parentesco com o tenente Guilherme, passaria com seu ônibus em exatos vinte minutos (e a sessenta quilômetros por hora) pelo cruzamento da Consolação com a Paulista, o suficiente para matar Anna, que, caso o leitor já tenha esquecido, será atropelada fatalmente ao meio dia e dez minutos deste funesto dia. O tenente Guilherme Dias nesse momento retornou ao carro em que Evaristo Gomes esperava, em frente à academia, na Cidade Universitária. O oficial estava mal-humorado, uma vez que a reunião fora cancelada e a viagem, perdida.


Faltando vinte para o meio dia, portanto dez minutos antes de Anna Lopes deixar sua faculdade e percorrer sua última meia hora de vida e treze minutos antes do ônibus em que estava José Francisco entrar na avenida Angélica, Ricardo Andrade decidiu que não estava em condições de trabalhar, inventou uma desculpa qualquer a sua superior e saiu rumo ao seu apartamento. Vinte minutos mais tarde, ou seja, ao meio dia, a viatura policial em que estavam Evaristo Gomes e o tenente Dias deixou o túnel da Rebouças, ao lado do shopping Eldorado. Simultaneamente, o ônibus conduzido por Rodolfo Dias margeava os muros do cemitério da Consolação, antes de entrar na avenida de mesmo nome.


Depois de oito minutos, nos últimos cento e vinte segundos de sua vida, o semáforo de pedestres mudou para vermelho e Anna Lopes foi obrigada a aguardar para atravessar o cruzamento. O motor do ônibus em que estava José Francisco rugiu escandalosamente, pois a faixa exclusiva estava livre e Rodolfo Dias vislumbrou uma das raras sensações de liberdade em seu trabalho, traduzida em exatos sessenta quilômetros por hora. Poucos segundos mais tarde, a instantes do horário marcado para o falecimento, José Francisco olhou despretensiosamente pela janela do ônibus e viu Anna Lopes parada na calçada. Tirou a câmera Nikon da mala e, discretamente, fotografou-a, sem saber bem o por que. Foi quando, cinco segundos adiante, o farol de pedestres finalmente se abriu e Anna lançou-se pela faixa. Um desatento Ricardo Andrade, que tentava aproveitar o farol amarelo com seu carro, chocou-se contra a estudante, que foi arremessada avenida adiante como um boneco de pano desengonçado, totalmente desprovida dos sentidos. Os policiais Gomes e Dias, que viram a cena do outro lado da avenida, onde aguardavam a abertura do semáforo, correram e tentaram socorrê-la, sem sucesso. Também impediram a tentativa de fuga de um amedrontado Ricardo Andrade, e o linchamento do mesmo pela população que ali estava, indignada. José Francisco, perplexo, nada demonstrou, seu semblante fora congelado pelo que acabara de presenciar. Ele apenas viu toda a confusão afastar-se na medida em que Rodolfo Dias seguiu adiante com seu ônibus, que afinal, não podia deter-se ali por muito tempo.


Fernando Azevedo, o porteiro do condomínio, que nada teve a ver com a história, ficou sabendo de um acidente qualquer por seu vizinho, o motorista de ônibus Rodolfo Dias. Só no dia seguinte, ao abrir o jornal e ver impressa a foto tirada por um tal de José Francisco, finalmente entendeu porque Ricardo Andrade não retornara a casa na tarde anterior.


Também sostuvo Pereira que o texto é, no frigir dos ovos, um plágio barato.