segunda-feira, 7 de junho de 2010

Sobre Violeta

1.
Ana Luíza estava apreensiva. Apoiava o corpo pequenino contra a pilastra da varanda, e o rosto de menina encostava no concreto frio. Ela nem se dava conta, mantinha os olhos arregalados na silhueta corpulenta da avó, que assistia tristonha com a cabeça enquanto falava ao telefone.

- Entendi. Claro, vocês têm toda a razão, não direi nada.

Ao levantar um pouco a vista, Ana Luíza deparou-se com o centenário relógio de pêndulo fixado acima da porta da sala. Mesmo tendo frequentado semanalmente aquela casa desde que nascera, só agora reparava no vai e vem incessante do pêndulo metálico. Não havia mais ninguém ali, o ambiente fora engolido pelo silêncio absoluto, quebrado apenas pelo alerta constante da passagem do tempo provocado pelas rudimentares engrenagens do relógio: dom, dom, dom, dom. Esse ruído maldito fez com que Ana Luíza se sentisse dentro de uma igreja enorme e silenciosa, e ela detestava igrejas.

Sua avó a levara uma vez, aos quatro anos. Excitou-se toda no caminho ao ver uma multidão confluindo à praça principal da cidade. Ficou hipnotizada com as centenas de sapatos velhos e surrados sendo arrastados pelo asfalto, um carnaval de solas e tiras de couro subitamente engolido pelo silêncio sepulcral da abóboda sagrada. Durante a hora e meia do serviço, Ana Luíza não conseguiu prestar atenção no padre. Ele era como o chiado das catracas do relógio, únicas a produzir som num ambiente enorme e muito triste. Dom, dom, dom, dom... Ela não gostava daquela devoção pelo silêncio, devoção à própria existência suspensa igual a uma pluma no ar.

- Por que as pessoas não falam nada aqui dentro? – perguntava-se.

Assim, como na igreja há três anos, Ana Luíza sentiu muito medo do silêncio da cozinha. Acuada, decidiu procurar por seu irmão.


2.
Rafael estava com os membros enterrados numa grande caixa de areia. Tinha três anos na época, e com uma pazinha enchia um balde para depois esvaziá-lo por cima de uns tantos bonecos de heróis, que dentro de pouco seriam totalmente tragados pelo Saara.

- Rafinha – disse Ana Luíza com voz preocupada – eu acho que a Violeta está muito mal, ninguém voltou ainda.

O menino nem respondeu. Seus olhos estavam de tal maneira fixos nas miniaturas a ponto de ser asfixiadas que não percebeu o que acabara de dizer sua irmã.

- Rafa, me escuta! Eu acho que a Violeta pode morrer.

Rafael olhou por um momento para aquela expressão indignada. Repetiu a palavra morrer de forma insegura, como tantas outras pronunciadas pelos maiores que desconhecia. Seu semblante confuso confessava que ele não sabia o que aquilo significava, morrer... Nos desenhos de ação que assistia algumas pessoas morriam, mas nos episódios seguintes reapareciam, às vezes reviviam e se envolviam em novas empreitadas. Morrer, para aquela criança, significava tão somente o desfecho de uma aventura, normalmente a vitória do herói frente ao vilão. Um fim que era também o recomeço de uma nova brincadeira, de um novo jogo. Enfim, para ele morrer era uma palavra vazia e indissociável a outras como jogo, disputa, desafio, diversão. Morrer era parte da diversão.

Diante da indiferença do irmão, Ana Luíza desferiu um pontapé no boneco do Homem-Aranha, lançado em piruetas pelo ar até rebater contra a parede de bambu da casinha de bonecas. Por fim conseguira a atenção do pequeno, um estridente choro de revolta contra a inexplicável violência dos mais velhos.

3.
Foi quando Ana Luíza escutou o motor do carro aproximando-se. Percorreu em disparada a sacada e escondeu-se atrás de um coqueiro próximo ao portão. Viu descer sua mãe primeiro, cabisbaixa e melancólica como nunca a vira antes. Depois saiu seu pai, que abriu a porta traseira para pegar um embrulho de cobertores do tamanho de um vaso de flores.

O coração de Ana Luíza começou a palpitar descontrolado. Seus olhinhos arderam com o sal de algumas lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. Estava difícil respirar, esforçava-se, mas pouquíssimo oxigênio alcançava seus pulmões. Era como o ar da igreja, denso e pesado, teimoso. Flagrou-se soluçando, um soluço doído. Não tardou a ouvir a voz de sua mãe, arrastada feito o relógio de pêndulo ou o sacerdote da igreja:

- Aninha... vem cá, meu amor.

4.
Uma nuvem de poeira ergueu-se por detrás de Ana Luíza, que corria em disparada pelo pasto do avô. À sua frente, o campo infinito de grama e terra batida, cercado por todos os lados por uma muralha de cana de açúcar. Não sabia como ainda tinha forças para correr, pois o choro consumia toda sua energia. Às costas, a imagem de sua mãe ia se apequenando a cada passada, a cada novo tufão de poeira seca que se formava.

Correu por meia hora, até parar debaixo do grande pé de manga que delimitava o fim do pasto e da propriedade. Enfiou a cabeça por entre os joelhos e tentou recuperar o fôlego. “Aninha, tente entender, não pudemos fazer nada. A Violeta entrou na plantação em que tinham acabado de jogar veneno para formiga”. A explicação de sua mãe não era suficiente. A Violeta não tinha nem um ano, era ainda um filhote. Fora seu tão esperado presente de aniversário de seis anos, um regalo ganho após anos de insistência e promessas de responsabilidade. Que justiça havia nisso?

Já não chorava, o pranto tinha sido substituído por uma cólera muda e desmedida. Algo havia sido roubado de si, algo precioso e irrecuperável. O ladrão lhe havia negado anos de felicidade, momentos por vir de prazer. Pelo que? Por uma imagem medonha da boca de um filhote espumando, de dois olhos miúdos suplicando por socorro à dona. Súplica inútil. Como aquilo lhe oprimia o coração, a tinham roubado e era preciso fazer algo a respeito. Procurou nos arredores pelo culpado. Um peão, talvez, que despejara o veneno na plantação. Ou mesmo seu próprio avô, mandante do serviço. Até seu pai, que se esqueceu de fechar o portão do quintal. Mas não havia ninguém, apenas o deserto de mato amarronzado com cheiro de brasa.

Enfurecida, Ana Luíza ergueu a cabeça e contemplou um exército de nuvens e marcha. Ventava muito. Segurou um pedregulho e com todas suas forças atirou-o contra os céus, mas o projétil não fez mais do que despencar em parábola. As colossais nuvens brancas fizeram que não viram a tentativa de agressão da menina. Outra pedra foi arremessada, e nada. Quando estava prestes e cair no choro novamente, reparou numa fila de formigas cruzando o caminho de terra. Esmagou a primeira com o polegar, morta após segundos de contorcimento. As nuvens mantinham a passada decidida, indiferentes. Estraçalhou a segunda formiga, e antes mesmo de conferir qualquer reação das nuvens já dera cabo em outras três. Mesmo assim, não houve resposta. Insatisfeita, Ana Luíza usou o chinelo para matar tantas quanto fosse possível de um só vez, e atendendo a um ímpeto inexplicável, pôs-se a saltar sobre o terreiro. Quando baixou a poeira, quase um centenar de formigas jazia morto, carnificina perpretada por Ana Luíza Cerqueira, menina de pouco mais de sete anos. Os insetos agonizam em conjunto, os sobreviventes escapavam pela grama. Segura de que agora era impossível passar desapercebida, mirou ansiosa o azul do céu. Nada! Nem chuva, nem um trovão ou corrente de ar inesperada. Apenas aquele exército branco a marchar lenta e constantemente.

Sentada junto à mangueira mais uma vez, Ana Luíza tornou a chorar. Lágrimas ardidas, com gosto da tragédia humana. Juntava com as mãozinhas imundas as pedras que rodeavam as raízes da árvore. Entregue a mais profunda tristeza, mal percebeu que algo tocava seu joelho. Era um pequeno gatinho, ainda recém-nascido, provavelmente abandonado por um dos trabalhadores que habitavam as cercanias. Os pelos eram tingidos de cinza e preto e o narizinho quase que totalmente rosado, desbotado. Ana Luíza afagou-lhe a nuca para depois percorrer com os dedos sua espinha em forma de arco. Abraçou-o contra o peito, e aquela pelugem macia como de pelúcia fez com que a imagem de Violeta reaparecesse nítida em sua mente. Voltou a sentir ódio, um ódio contra todos que de alguma forma estavam envolvidos na repugnante morte de seu bichinho de estimação. Sua avó falava muito em Deus, da bondade e misericórdia infinita daquele senhor que morava em cima das nuvens. Mais de uma vez contara que ele podia fazer tudo e ver a todos, não importa onde estivessem. Se fosse verdade, Deus teria visto Violeta encarar com curiosidade o portão aberto. Ele observá-la-ia percorrendo ligeira o matagal até perder-se entre as varas de cana de açúcar, um mar ondulando a mercê da vontade das rajadas de ar. Ele saberia de tudo muito antes de acontecer, e mesmo assim Violeta era morta.

Na medida em que esse raciocínio avançava, Ana Luíza ia enrijecendo os braços, até senti-los aquecidos pela pulsação viva da jugular do animal. Fora roubada sua maior preciosidade, motivo de admiração entre as amiguinhas do bairro. Fora roubada de forma tão bruta e crua, sem remediação ou possibilidades de um pedido de desculpas. E não podia fazer nada a respeito. A não ser... Seus braços estavam duros como pedra, sufocando o felino. Ela não dava sinais de que pretendia aliviá-los, tinha sido roubada! “Tirou-me uma vida, eis aqui teu troco, bruto e cru assim como sufocou Violeta”.

Teria enforcado o frágil gato não fosse um miado de dor que ouviu no último minuto. Era um som diferente de tudo o que escutara no dia, talvez algo parecido com o que gritaria Violeta caso tivesse forças quando entrara já cambaleando no jardim. Tratava-se de um grito agudo, diverso do metálico ir e vir das engrenagens do relógio, ou do soberano timbre do padre, ou da sofrida voz de sua mãe. “Aninha... vem cá, meu amor”.

Ana Luíza berrou horrorizada, como se despertasse de um transe, afrouxou os pulsos e deixou o gato escapar. Não ventava mais tão forte, o Sol abrasava aquela face lisa de criança. Encheu o peito de ar, o odor da grama ressecada, costumaz daquela estação quente, invadiu-lhe as narinas. Engoliu o restante do pranto feito quem toma um remédio amargo, porém necessário, e retornou a passadas trôpegas a casa. Acima de si, as mesmas nuvens seguiam seu caminho como se nada houvesse acontecido.