domingo, 15 de agosto de 2010

Sobre o acaso

Sostuvo Pereira, meio atordoado ao receber esta imagem de um amigo em viagem, ser possível que duas pessoas gostem do mesmo filme ao ponto de batizar algum projeto pessoal com o título do mesmo. O dele, certamente, muito mais modesto do que o charmoso sebinho granadeño.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Sobre Violeta

1.
Ana Luíza estava apreensiva. Apoiava o corpo pequenino contra a pilastra da varanda, e o rosto de menina encostava no concreto frio. Ela nem se dava conta, mantinha os olhos arregalados na silhueta corpulenta da avó, que assistia tristonha com a cabeça enquanto falava ao telefone.

- Entendi. Claro, vocês têm toda a razão, não direi nada.

Ao levantar um pouco a vista, Ana Luíza deparou-se com o centenário relógio de pêndulo fixado acima da porta da sala. Mesmo tendo frequentado semanalmente aquela casa desde que nascera, só agora reparava no vai e vem incessante do pêndulo metálico. Não havia mais ninguém ali, o ambiente fora engolido pelo silêncio absoluto, quebrado apenas pelo alerta constante da passagem do tempo provocado pelas rudimentares engrenagens do relógio: dom, dom, dom, dom. Esse ruído maldito fez com que Ana Luíza se sentisse dentro de uma igreja enorme e silenciosa, e ela detestava igrejas.

Sua avó a levara uma vez, aos quatro anos. Excitou-se toda no caminho ao ver uma multidão confluindo à praça principal da cidade. Ficou hipnotizada com as centenas de sapatos velhos e surrados sendo arrastados pelo asfalto, um carnaval de solas e tiras de couro subitamente engolido pelo silêncio sepulcral da abóboda sagrada. Durante a hora e meia do serviço, Ana Luíza não conseguiu prestar atenção no padre. Ele era como o chiado das catracas do relógio, únicas a produzir som num ambiente enorme e muito triste. Dom, dom, dom, dom... Ela não gostava daquela devoção pelo silêncio, devoção à própria existência suspensa igual a uma pluma no ar.

- Por que as pessoas não falam nada aqui dentro? – perguntava-se.

Assim, como na igreja há três anos, Ana Luíza sentiu muito medo do silêncio da cozinha. Acuada, decidiu procurar por seu irmão.


2.
Rafael estava com os membros enterrados numa grande caixa de areia. Tinha três anos na época, e com uma pazinha enchia um balde para depois esvaziá-lo por cima de uns tantos bonecos de heróis, que dentro de pouco seriam totalmente tragados pelo Saara.

- Rafinha – disse Ana Luíza com voz preocupada – eu acho que a Violeta está muito mal, ninguém voltou ainda.

O menino nem respondeu. Seus olhos estavam de tal maneira fixos nas miniaturas a ponto de ser asfixiadas que não percebeu o que acabara de dizer sua irmã.

- Rafa, me escuta! Eu acho que a Violeta pode morrer.

Rafael olhou por um momento para aquela expressão indignada. Repetiu a palavra morrer de forma insegura, como tantas outras pronunciadas pelos maiores que desconhecia. Seu semblante confuso confessava que ele não sabia o que aquilo significava, morrer... Nos desenhos de ação que assistia algumas pessoas morriam, mas nos episódios seguintes reapareciam, às vezes reviviam e se envolviam em novas empreitadas. Morrer, para aquela criança, significava tão somente o desfecho de uma aventura, normalmente a vitória do herói frente ao vilão. Um fim que era também o recomeço de uma nova brincadeira, de um novo jogo. Enfim, para ele morrer era uma palavra vazia e indissociável a outras como jogo, disputa, desafio, diversão. Morrer era parte da diversão.

Diante da indiferença do irmão, Ana Luíza desferiu um pontapé no boneco do Homem-Aranha, lançado em piruetas pelo ar até rebater contra a parede de bambu da casinha de bonecas. Por fim conseguira a atenção do pequeno, um estridente choro de revolta contra a inexplicável violência dos mais velhos.

3.
Foi quando Ana Luíza escutou o motor do carro aproximando-se. Percorreu em disparada a sacada e escondeu-se atrás de um coqueiro próximo ao portão. Viu descer sua mãe primeiro, cabisbaixa e melancólica como nunca a vira antes. Depois saiu seu pai, que abriu a porta traseira para pegar um embrulho de cobertores do tamanho de um vaso de flores.

O coração de Ana Luíza começou a palpitar descontrolado. Seus olhinhos arderam com o sal de algumas lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. Estava difícil respirar, esforçava-se, mas pouquíssimo oxigênio alcançava seus pulmões. Era como o ar da igreja, denso e pesado, teimoso. Flagrou-se soluçando, um soluço doído. Não tardou a ouvir a voz de sua mãe, arrastada feito o relógio de pêndulo ou o sacerdote da igreja:

- Aninha... vem cá, meu amor.

4.
Uma nuvem de poeira ergueu-se por detrás de Ana Luíza, que corria em disparada pelo pasto do avô. À sua frente, o campo infinito de grama e terra batida, cercado por todos os lados por uma muralha de cana de açúcar. Não sabia como ainda tinha forças para correr, pois o choro consumia toda sua energia. Às costas, a imagem de sua mãe ia se apequenando a cada passada, a cada novo tufão de poeira seca que se formava.

Correu por meia hora, até parar debaixo do grande pé de manga que delimitava o fim do pasto e da propriedade. Enfiou a cabeça por entre os joelhos e tentou recuperar o fôlego. “Aninha, tente entender, não pudemos fazer nada. A Violeta entrou na plantação em que tinham acabado de jogar veneno para formiga”. A explicação de sua mãe não era suficiente. A Violeta não tinha nem um ano, era ainda um filhote. Fora seu tão esperado presente de aniversário de seis anos, um regalo ganho após anos de insistência e promessas de responsabilidade. Que justiça havia nisso?

Já não chorava, o pranto tinha sido substituído por uma cólera muda e desmedida. Algo havia sido roubado de si, algo precioso e irrecuperável. O ladrão lhe havia negado anos de felicidade, momentos por vir de prazer. Pelo que? Por uma imagem medonha da boca de um filhote espumando, de dois olhos miúdos suplicando por socorro à dona. Súplica inútil. Como aquilo lhe oprimia o coração, a tinham roubado e era preciso fazer algo a respeito. Procurou nos arredores pelo culpado. Um peão, talvez, que despejara o veneno na plantação. Ou mesmo seu próprio avô, mandante do serviço. Até seu pai, que se esqueceu de fechar o portão do quintal. Mas não havia ninguém, apenas o deserto de mato amarronzado com cheiro de brasa.

Enfurecida, Ana Luíza ergueu a cabeça e contemplou um exército de nuvens e marcha. Ventava muito. Segurou um pedregulho e com todas suas forças atirou-o contra os céus, mas o projétil não fez mais do que despencar em parábola. As colossais nuvens brancas fizeram que não viram a tentativa de agressão da menina. Outra pedra foi arremessada, e nada. Quando estava prestes e cair no choro novamente, reparou numa fila de formigas cruzando o caminho de terra. Esmagou a primeira com o polegar, morta após segundos de contorcimento. As nuvens mantinham a passada decidida, indiferentes. Estraçalhou a segunda formiga, e antes mesmo de conferir qualquer reação das nuvens já dera cabo em outras três. Mesmo assim, não houve resposta. Insatisfeita, Ana Luíza usou o chinelo para matar tantas quanto fosse possível de um só vez, e atendendo a um ímpeto inexplicável, pôs-se a saltar sobre o terreiro. Quando baixou a poeira, quase um centenar de formigas jazia morto, carnificina perpretada por Ana Luíza Cerqueira, menina de pouco mais de sete anos. Os insetos agonizam em conjunto, os sobreviventes escapavam pela grama. Segura de que agora era impossível passar desapercebida, mirou ansiosa o azul do céu. Nada! Nem chuva, nem um trovão ou corrente de ar inesperada. Apenas aquele exército branco a marchar lenta e constantemente.

Sentada junto à mangueira mais uma vez, Ana Luíza tornou a chorar. Lágrimas ardidas, com gosto da tragédia humana. Juntava com as mãozinhas imundas as pedras que rodeavam as raízes da árvore. Entregue a mais profunda tristeza, mal percebeu que algo tocava seu joelho. Era um pequeno gatinho, ainda recém-nascido, provavelmente abandonado por um dos trabalhadores que habitavam as cercanias. Os pelos eram tingidos de cinza e preto e o narizinho quase que totalmente rosado, desbotado. Ana Luíza afagou-lhe a nuca para depois percorrer com os dedos sua espinha em forma de arco. Abraçou-o contra o peito, e aquela pelugem macia como de pelúcia fez com que a imagem de Violeta reaparecesse nítida em sua mente. Voltou a sentir ódio, um ódio contra todos que de alguma forma estavam envolvidos na repugnante morte de seu bichinho de estimação. Sua avó falava muito em Deus, da bondade e misericórdia infinita daquele senhor que morava em cima das nuvens. Mais de uma vez contara que ele podia fazer tudo e ver a todos, não importa onde estivessem. Se fosse verdade, Deus teria visto Violeta encarar com curiosidade o portão aberto. Ele observá-la-ia percorrendo ligeira o matagal até perder-se entre as varas de cana de açúcar, um mar ondulando a mercê da vontade das rajadas de ar. Ele saberia de tudo muito antes de acontecer, e mesmo assim Violeta era morta.

Na medida em que esse raciocínio avançava, Ana Luíza ia enrijecendo os braços, até senti-los aquecidos pela pulsação viva da jugular do animal. Fora roubada sua maior preciosidade, motivo de admiração entre as amiguinhas do bairro. Fora roubada de forma tão bruta e crua, sem remediação ou possibilidades de um pedido de desculpas. E não podia fazer nada a respeito. A não ser... Seus braços estavam duros como pedra, sufocando o felino. Ela não dava sinais de que pretendia aliviá-los, tinha sido roubada! “Tirou-me uma vida, eis aqui teu troco, bruto e cru assim como sufocou Violeta”.

Teria enforcado o frágil gato não fosse um miado de dor que ouviu no último minuto. Era um som diferente de tudo o que escutara no dia, talvez algo parecido com o que gritaria Violeta caso tivesse forças quando entrara já cambaleando no jardim. Tratava-se de um grito agudo, diverso do metálico ir e vir das engrenagens do relógio, ou do soberano timbre do padre, ou da sofrida voz de sua mãe. “Aninha... vem cá, meu amor”.

Ana Luíza berrou horrorizada, como se despertasse de um transe, afrouxou os pulsos e deixou o gato escapar. Não ventava mais tão forte, o Sol abrasava aquela face lisa de criança. Encheu o peito de ar, o odor da grama ressecada, costumaz daquela estação quente, invadiu-lhe as narinas. Engoliu o restante do pranto feito quem toma um remédio amargo, porém necessário, e retornou a passadas trôpegas a casa. Acima de si, as mesmas nuvens seguiam seu caminho como se nada houvesse acontecido.

domingo, 25 de abril de 2010

Sobre as parábolas

Vendo o filme A Dúvida recentemente, Pereira se deparou com uma interessante historieta. Não pelo conteúdo didático em si, mas por subitamente lembrar-se de sua mãe contando exatamente a mesma trama quando ele era ainda pequeno. Começa assim:

Era uma vez uma gentil anciã de olhos caridosos e querida por todos. Um dia, entretanto, ela cometeu um ato terrível. Levada por insinuações e incertezas, deu falso testemunho contra uma pessoa que pouco conhecia. Semanas depois, ao ser alertada por um amigo da terrível consequencia de suas ações, seu coração se encheu de culpa e ela decidiu recorrer à igreja por perdão. Adentrou no confessionário:

- Padre, cometi uma grande injustiça - e revelou o ocorrido.

Sentia-se extremamente oprimida pelo remorso, mas também aliviada por estar prestes a receber a remissão do pecado por meio da penitência.

- O que faço para me desculparem, senhor? - concluiu.

- Mulher desgraçada, para ti não há redenção. Teu crime é irreparável - esbravejou o padre.

Feito um martelo, o sangue da senhora começou a pulsar em desespero, num descompasso que ruborizou suas faces.

- Mas meu senhor, deve haver um modo. Por Deus, quero e estou aqui para encontrar o perdão divino.

- Bem - recomeçou o sacerdote - a redenção do Senhor já a tens, ele na sua bondade infinita te compreende e acolhe. Quanto a reparar teu erro entre os homens, talvez haja uma única maneira.

A mulher quase encostou a orelha na grade que dividia o confessionário ao meio

- Diga, padre, pelo amor de Deus fale logo.

- Espero um dia nublado e de ventos potentes, um dia em que o céu esteja tão revolto que seja evidente a cólera divina. Com um travesseiro e uma faca em mãos, suba até o campanário dessa mesma igreja. Quando estiver lá em cima, apunhale o travesseiro e deixe a ventania carregar as penas por todos os cantos - A anciã estava espantada, sem entender o objetivo do confessor - Depois desça e se preste a recolher todas as plumas, cada uma delas, sem excessão. Traga-as todas a mim.

- Mas isso é impossível, elas voariam para as partes mais distantes e eu nunca encontraria todas - retrucou a pecadora.

- Certíssimo, minha criança, mas é o que acontece quando se espalha falsidades e intrigas. Deus te perdoa em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.

domingo, 11 de abril de 2010

Sobre o quase fim de Pereira, em quatro atos

1. Morto-vivo

Apesar de ser início de setembro, aquele dia amanhecera misteriosamente frio. Os pés de Pereira estavam gelados, como se fossem feitos de vidro e pudessem se romper ao menor choque. Para deixar sua casa rumo à escola, onde lecionaria a aula inaugural de Filosofia ao nono ano, cobriu-se com uma malha de lã. Mesmo assim, como ainda sentia um frio incomodo nas juntas e músculos, decidiu resgatar a pesada casaca do armário, que passava pelo esquecimento anual de veraneio.

Ao abrir a porta e pisar na calçada, veio o espanto. Pessoas caminhavam trajando roupas leves e frescas, alguns de bermudas e camisetas, uns outros, mais formais, levavam calças e camisas de mangas curtas, visivelmente molestados pelo árido calor peninsular, tão conhecido daquele mês. Um jovem passou pelo velho agasalhado Pereira, que nessa ocasião tinha entre 55 e 60 anos, e, surpreso, pôs-se a abanar com a gola da camiseta o peito seminu, pois a simples visão daquele corpo metido em camadas e camadas de tecido o sufocava.

“Devo estar doente”, pensou enquanto apalpava as bochechas com as costas dos dedos. Sua face ardia em brasa, contrastando com as mãos gélidas e descoloridas, feito membros de um cadáver. “Talvez não seja prudente ir dar aulas hoje, devo estar com febre. Mas é o primeiro dia e já reservei o projetor para o filme. E se for algo mais sério? Que besteira! Ontem mesmo eu estava perfeitamente saudável, depois da lição retorno a casa para repousar, e pronto. Mas será que não é teimosia demais, descuido besta?” A hesitação e indecisão apoderaram-se da mente. Enquanto isso, sem se dar conta, suas pernas tomaram vida própria e o carregaram pelas ruas de Lisboa, pelo mesmo trajeto que fazia todos os dias e, por isso, dispensava qualquer nível de consciência. Quando, por fim, resolveu que estava realmente enfermo e seria aconselhável regressar, viu-se já sendo sacolejado pelo ônibus. Nem mesmo o abafado ar do interior do carro fez com que se sentisse aquecido e, em determinado momento, um calafrio lhe subiu violentamente a espinha, fazendo com que se enfiasse ainda mais dentro da gola da casaca. Foi quando notou, meio que por acaso, o edifício da escola ficando maior conforme a condução avançava. “Não tem jeito, agora tenho que ir”. Deu sinal ao motorista e desceu.

2. A aula

O colégio secundário se situava em um amplo edifício retangular de quatro andares. Um pequeno jardim além dos portões de metal, que de velhos e vacilantes rangiam escandalosos quando abriam e fechavam, dava para a entrada principal. Na portaria trabalhava a secretária, uma quarentona de nome Amália e feições carrancudas. O restante do espaço se prolongava por mais de cem metros, e em cada lado estavam dispostas salas de aula. Pereira caminhou até o final do corredor, cabisbaixo para abrigar o pescoço dentro da casaca, com a mão livre enfiada fundo no bolso, e tomou as escadarias que o levaria ao quarto andar. Diversas vezes ateve-se entre um degrau e outro para recuperar o ar e escorar-se no corrimão, fatigado. Antes de entrar na terceira sala à esquerda, permaneceu por instantes imóvel ao lado da porta, como um gladiador a reunir forças e coragem diante da arena. Por fim respirou fundo, enxugou a testa com a manga aveludada e entrou.

As salas eram espaçosas e as paredes, altas. Havia três amplas janelas no lado oposto à porta, que dava para a quadra de esportes. Eram vidraças sustentadas por firmes esquadrias de ferro, que iluminavam o ambiente por completo, tornando as lâmpadas suspensas no teto inúteis. A intensidade dos raios solares daquele dia de verão infernal era absorvida pelos vidros, e a sala ficou com temperatura de uma estufa. Pereira depositou a maleta de couro em sua cadeira, apoiou ambos punhos sobre a mesa e dobrou os braços, ficando em posição de flexão. Esboçou um tímido e quase incompreensível bom dia a turma e explicou que todos assistiriam ao filme O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, como primeira atividade do ano. Claro que o professor havia preparado uma introdução ao ensino da Filosofia, para ser apresentada antes da projeção: o que estudariam naquele ano, porque havia escolhido esse filme para ilustrar algumas das questões do cronograma, etc. Mas o inexplicável frio que sentia enfraquecia o corpo, seus olhos salpicavam doloridos e uma estranha irritação aquecia as bochechas, ao mesmo tempo em que sentia os pulsos e pés enfiados em baldes de gelo. Além do mais, aquela luminosidade excessiva agredia as pálpebras, turvando a visão e outros sentidos, e o velho não sabia ao certo o que ouvia, cheirava ou enxergava. Ordenou logo que fechassem as cortinas, entregou o DVD à aluna mais próxima - que se espantou com a expressão de calvário do mestre - e disse: “coloque isso no projetor, depois do filme eu explico melhor”.

Os mais de trinta alunos assistiram intrigados às primeiras cenas do filme. Não pelo enredo em si, pois se mostravam visivelmente desinteressados com o encontro do cavaleiro medieval e a morte em uma praia rochosa da Suécia. Estavam todos com os olhos fixos naquele excêntrico professor de Filosofia, que a grande maioria não conhecia e apenas alguns se lembravam de tê-lo visto pelos corredores em anos anteriores. Um grupo de cinco garotos começou a rir baixo do homem sentado na mesa diante de todos, com os cotovelos sustentando todo o peso do corpo e as mãos coladas umas às outras, para vencer a temperatura, mas foram logo censurados por um sofrido “atenção!” de Pereira. Assim, com todos apreensivos, seguiu a trama: o cavaleiro e a parca começam o jogo de xadrez; ele e seu escudeiro perambulam de povoado em povoado, sempre rodeados pelo morticínio causado pela peste; encontra o casal de atores, quando vê um resquício de vida e felicidade em meio às almas eternamente flageladas pela fome, morte e inquisição. Na medida em que o filme se aproximava do final, com a trupe atravessando a passos cuidadosos a densa floresta, Pereira sentiu que um repentino mal-estar começou a formar-se também em seu estômago. A febre aumentara e ele escondeu o rosto entre as palmas, momento em que se deu conta de que sua testa se desmanchava em suor. A baixíssima sensação térmica agora não atingia apenas as mãos e os pés, mas também o restante dos braços e pernas. Quando o casal de atores armou acampamento dentro da carroça, ao lado do cavaleiro e dos demais, os olhos de Pereira lacrimejavam descontroladamente. Um desespero foi se apossando de seu espírito (nunca havia passado por nada parecido), e o medo era tamanho que se confundia com o enjôo que molestava suas entranhas, com o arder de sua face, o salpicar dos olhos e a sensação de debilidade dos membros. Pereira então mirou uma última vez a tela - exatamente no momento em que o cavaleiro arremessa o tabuleiro aos ares, a fim de distrair a morte e permitir que o casal de atores fuja -, sentiu que algo amargo lhe envolvia o estômago e se preparava para subir até as narinas, teve um fortíssimo calafrio que enrijeceu seus nervos, viu a luz do projetor anestesiar a visão, perdeu os sentidos e se esfacelou no chão de madeira, para gritos de horror dos alunos

3. O jogo e um diálogo

De tanto banhar o rosto, o sal da água do mar já ressecava os lábios de Pereira. Aos poucos foi recuperando a consciência: primeiro enxergou borrões cinzas tomarem forma de escarpas montanhosas, sentiu a áspera textura de areias e pedras com as pontas dos dedos, e ouviu a suave brisa acariciar sua pele. Pôs-se em pé. Estava em meio a uma praia rochosa, dessas que só se encontram em regiões setentrionais e muito distantes de Portugal. O céu estava encoberto por pesadas nuvens enegrecidas, e elas produziam trovões estrondosos, o que agitava violentamente o mar. Era, enfim, uma paisagem muito semelhante, se não idêntica, a cena inicial do filme de Bergman. O silvo do vento, os céus em ressaca e a ausência de sol levavam a crer que fazia um frio agudo, mas curiosamente Pereira não se sentia mais incomodado. Tampouco fazia calor; na verdade não sabia bem ao certo o que sentia, nem se sentia alguma coisa de fato. A alguns metros, reconheceu de costas, debruçado sobre si mesmo e encapuzado, o cavaleiro medieval, que tinha na capa um vistoso bordado da cruz de malta. Pereira aproximou-se cauteloso e, ao tocar o ombro revestido pela cota de malha, o templário deslizou para fora da pedra e caiu inerte no chão, revelando que dentro do capuz não havia nada além de um crânio asqueroso e carcomido. O português não teve tempo de gritar, muito menos de afastar-se num salto, pois uma voz cadenciada e grave chamava por seu nome.

- Olá – Pereira atendeu à saudação e se deparou com a morte do filme, um homem alto e esguio, metido numa comprida batina negra e com uma face levemente roliça, mas totalmente esbranquiçada. A incredulidade confessa fez com que o velho se mantivesse em silêncio por alguns segundos.

- Você não vai falar nada? Perguntar quem sou, talvez? – Insistiu a morte.

- Acho que eu não vou acreditar, independente do que diga.

- Muito bem, muito bem. Isso dispensa a necessidade de apresentações desnecessárias. Afinal, você já viu esse filme umas tantas vezes e estou certo que me reconheceu – a horripilante figura parecia divertir-se sadicamente com seu monólogo– Você joga? – emendou ao indicar um tabuleiro de xadrez, antes escondido pelo cadáver do cavaleiro.

- Não. Quer dizer, sei muito pouco, mas não sei jogar bem.

- Bobagem! Claro que você sabe jogar, talvez não saiba as regras, mas o espírito de competidor está no seu sangue. Tenho certeza que, se não for por habilidade, por instinto darás um interessante adversário. Venha, sente-se, sente-se. Aí não, se me perdoas, prefiro jogar com as brancas, me dá mais sorte. É uma superstição tola, adquirida há muito tempo, mas hoje não consigo mais me desvencilhar dela, espero que entendas.

Pereira obedecia aos comandos calado, desconfiado daquelas palavras, tão articuladas e claras, de voz até agradável, mas que pelo olhar de raposa do dono pareciam também ardilosas e traiçoeiras.

- Pronto – disse a morte satisfeita, revelando um sorriso amarelado – movi meu primeiro peão, agora é a sua vez.

Pereira titubeou algumas vezes, em dúvida sobre qual peão avançar. Pensava impossível o que estava se desenrolando ali, não podia ser verdade, jamais. Estava convencido de que não passava de um delírio provocado pela doença. Logo acordaria, recuperaria os sentidos e seguiria com sua vida. Mas ao mesmo tempo se sentia empolgado, até mesmo excitado pelo simbolismo daquilo tudo. “Que seja uma loucura descabida, o melhor é render-me a minha própria consciência. Afinal, se estou sonhando, esse sujeito travestido de ceifador de almas sou eu mesmo, ninguém mais. Nem a morte, nem Deus, nem o Diabo, sou só eu”. Esse pensamento lhe rendeu confiança e ele empurrou adiante a peça da penúltima casa à direita, para liberar o bispo.

A partida se desenrolou lentamente, em silêncio. A decisão de Pereira de fazer frente à morte - ou ao seu próprio inconsciente, ou a quem quer que aquela figura obscura fosse ou representasse - em seus próprios termos fez aflorar-lhe um talento eternamente ignorado para o tabuleiro. Subitamente se deu conta de que conhecia as táticas de ataque e defesa, de intimidação e de acuamento, e por grande parte do jogo esteve de igual para igual. Aos poucos os peões de ambos foram ficando mais escassos e, por uma sutil distração, a morte deixou um cavalo vulnerável, rapidamente removido por uma das torres do adversário. Assim que em determinado instante, Pereira achou-se em vantagem, e seu peito retumbou inquieto, poderoso e quase certo da vitória, uma questão de tempo. Apesar da visível adversidade, a parca em nenhum momento mostrou-se preocupada. Apenas esquivava as peças mais importantes das investidas impetuosas, sacrificava alguns peões aqui e acolá e esperava, sempre com o mesmo amarelado sorriso na cara. E foi nessa mesma infindável paciência, em movimentos lentos, porém precisos dos braços, feito um padre ao dar a benção, que ela abocanhou o primeiro bispo preto. Este, por sua vez, deixou desprotegido uma torre, também rapidamente ceifada. Pereira mal teve tempo de recompor-se do golpe e já viu um de seus cavalos ser abatido pela rainha e, durante a quase eternidade que a disputa de estendeu, foi perdendo, gradualmente, peões, torre, bispo,cavalo e rainha. O inevitável xeque-mate, prolongado pela estúpida insistência de Pereira em correr com o Rei pelo tabuleiro, sempre esbarrando no fim de cada horizontal e coluna, foi proferido – puro sadismo da morte – por um frágil e unidirecional peão.

- Ah, meu amigo, que partida – a morte carregava um sorriso odioso de troça nos lábios.

Pereira, ainda desnorteado pela derrota, silenciou, contemplando o regozijo do outro. Logo falou:

- Desde o início, não tinha jeito de eu ganhar, verdade? Você sabia disso desde o início.

- Mas é claro que sim.

- Hum... Então por que você se deu ao trabalho?

- Trabalho? Não ouse chamar um esporte assim tão belo, nobre, de trabalho. Por incrível que possa parecer, mesmo sabendo que sairei vencedor no final, cada desafio se mostra particularmente instigante. Uns mais, outros menos, é verdade. Mas no geral é um bom exercício para quem, como você pode imaginar, dispõe de um bocado de tempo.

- Realmente. É difícil imaginar que para um sádico como você seja penoso fazer isso pelo esporte, por passa-tempo.

- De fa-to – contestou a morte, com cuidado para deleitar-se com todas as sílabas, pronunciando cada som vagarosamente.

- E para os perdedores? De que vale?

- Ora, seu Pereira. Não seja assim tão negativista e não queira dar-me responsabilidades que não são minhas. Isso é algo que deixo para vocês. Afinal, existe algo mais desesperador e, ao mesmo tempo, maravilhoso do que achar graça – não, graça é uma palavra para seres do meu mundo, que sejam razões, sentidos, porquês, essas palavras que vocês gostam tanto – de um jogo em que só há vencidos?

Pereira então aceitou a mão que a morte lhe estendida. Ao tocá-la, sentiu frio e veio, mais uma vez, o nada.

4. Vivo-morto

Ainda com febre e o corpo dolorido, Nicola Pereira despertou em uma cama de hospital. Entrava muito sol pela janela ao lado de seu leito, mas não o incomodava mais tanto. Estava, apesar de um pouco grogue, relativamente bem.

- Ah, o senhor despertou. Como se sente? O senhor teve um colapso... – o paciente ouvia aqueles nomes difíceis fingindo atenção. O médico se prolongou por uns quantos minutos, numa descrição pedagógica do que acontecera com o organismo de Pereira, e este assentia teatralmente com a cabeça. Finalmente, o clínico disse o que realmente interessava – descobrimos que isso foi causado por uma diabetes tardiamente revelada. O senhor tem é sorte de nunca ter passado por nada desse nível antes, poderia ter morrido. Mas não se preocupe, a partir de agora, com o tratamento correto e nada de álcool ou açúcar, vai ter uma vida saudável.

- Pois não doutor, certamente – disse Pereira com o mesmo sorriso amarelado, muito parecido ao que vira estampado na cara de seu algoz no xadrez.

domingo, 28 de março de 2010

Sobre mais essas aspas

Ora, Pedro, é lógico. A Mayumi aceitou a frustração de não ter o brinquedo sempre com ela. Quem aceita frustrações, espera, quem espera, pensa. Quem pensa, sente. Quem sente, vive o tempo, e sabe que ele está passando. Portanto, fica mais velho. (O Fazedor de Velhos, de Rodrigo Lacerda)

Melhor do que essa, só mesmo a tal frase que, numa só tacada, define no que consiste a tragédia do Rei Lear, e, quem sabe, de toda a humanidade.

Como moscas para meninos travessos, assim somos nós para os deuses; eles nos matam por diversão.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Sobre a injustiça

Hoje, nas ruas de Lisboa, Nicola Pereira presenciou uma grande injustiça. Um velho de barba cor de neve, desses que caminham inofensivos pelas ladeiras, lentamente a guardar com os olhos cada passo, foi humilhado e espancado em público por um insolente moleque. Pereira não sabe a razão da ofensa, apenas ouviu as lágrimas do ancião, que jurava nada ter feito de errado. Sua alma se encheu de ódio quando viu o agressor, que após o fato virou as costas, jogou o nariz para o alto feito um pavão rei e seguiu caminho pelas vielas lusitanas. O mais revoltante, entretanto, foi a multidão, a corja lisboeta assistindo a tudo, indignada, mas sem proferir palavra. Aos poucos todos, uns mais cedo, outros minutos depois, deram de ombros e seguiram suas vidas. Mas do que reclama Pereira, se ele mesmo se conteve a mirar os próprios joelhos?

quinta-feira, 4 de março de 2010

Sobre o erotismo

Sostuvo Pereira que este talvez seja o mais autobiográfico post de seu blog, e por isso talvez seja também o mais desinteressante.

O dia tinha sido exaustivo. Horas e horas apoiado por sobre os cotovelos lendo e relendo os exames de seus alunos, uma pilha de papéis com garranchos azuis que iam sendo coloridos de vermelho a cada novo nome. Dentre as atribuições de um professor, avaliar provas é a mais enfadonha, a mais maçante, algo que faz um se sentir preso numa obrigação burocrática sufocante. Quando saiu da escola, já pelas tantas da noite, tinha os músculos contraídos pelo cansaço e sua cabeça latejava dolorida, como se houvesse algo se expandindo violentamente ali dentro. A primeira coisa que fez, mal tinha deixado os portões, foi buscar no bolso do sobretudo o maço de cigarro. Normalmente evitava fumar nas proximidades da escola, passava mal exemplo às crianças, mas desta vez nada importava, precisava relaxar.

Sua casa era distante uns poucos quilômetros dali. Ele usava a linha de ônibus que passava na esquina e saltava vinte minutos depois. Se tivesse sorte, sentava em lugar próximo a janela para observar despretensioso as ruas. Primeiro a praça do Marechal, com a imponente estátua vigilante no centro, abrigo de indigentes e mendigos; o viaduto, quando o ônibus dava leves solavancos devido à via esburacada, para, por fim, dobrar a esquerda na Rua das Benditas Senhoras, em frente ao número 15, uma típica livraria chamada O Fingidor. As vitrines eram emolduradas em madeira e havia uma quase que invisível porta à esquerda, que dava acesso aos dois apartamentos do segundo andar. As paredes do edifício eram revestidas de esverdejantes trepadeiras, que escalavam e enlaçavam com seus robustos dedos os tijolinhos cor de barro. A varanda de seu charmoso piso havia sido quase que engolida pela cascata viva de folhas e caules que despencava do terraço.

Mas naquela noite, o simples pensar em entrar num abafado ônibus remexeu com seu estômago. Era melhor andar por uma hora e tentar aliviar a tensão com cigarros e passos desacelerados. Foram cinco bitucas arremessadas ao chão, mas mesmo assim não conseguiu sentir-se melhor. Seria uma noite de cão. Percorreu o caminho num frenesi de pensamentos que se sobrepunham uns aos outros: como seus trabalho era pouco gratificante, em todos os sentidos, como o recente divórcio estava dividindo os poucos bens que tinha, como a solidão amargava suas madrugadas, como sua vida era, já aos 40, vazia. Quando girou a chave no portão que dava para a escadaria, seguiu o protocolo e conferiu a caixa dos correios. Havia ali dentro um pequeno envelope, não maior do que um caderno, com bem uns sete selos dispostos no lado do destinatário, todos com imagens do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar impressas. Seu sangue começou a ferver, não precisaria nem ler o endereço para saber quem o havia enviado.

O livro dentro do envelope, Paris é uma Festa, de Ernest Hemingway, era um presente da Beatriz, uma brasileira que conhecera há três anos numa viagem. Foi uma dessas relações estranhas, mal se conheceram e, por uma empatia imediata, ou por uma carência de ambos, se tornaram amantes. Passavam as noites e manhãs trancafiados no apartamento dela na Lapa, e só saiam às tardes para almoçar em algum restaurante próximo. Nas duas semanas que ele permaneceu no Rio, não visitou nenhum ponto turístico, simplesmente não compareceu ao congresso de Literatura, motivo de sua visita, e viu a praia de Copacabana apenas da janelinha do avião. Era como se aquele quarteirão da Lapa contivesse tudo o que ele precisava para viver e ser feliz. A Lapa era um refúgio muito bem guarnecido de tudo o que Portugal representava, país para o qual regressou pouco depois, porque lá estava a família, o trabalho, a esposa e o filho, certamente mais importantes do que sua paz criminosa no estrangeiro.

Sob a mórbida luz amarela de uma lamparina, leu paciente a carta enfiada entre as páginas do livro. “Nicola, logo na dedicatória o autor diz o seguinte: se você teve a sorte de viver em Paris quando jovem, Paris fará parte da sua vida para sempre, porque Paris é uma festa. Acho que é mais ou menos isso. Não sei por que ao certo pensei em você ao lê-lo, talvez seja pelo meu confesso fascínio por Lisboa. Tomei a liberdade de trocar a cidade e tudo pareceu se encaixar do mesmo modo. Aqui no Brasil as coisas seguem iguais, e sinto falta de não ouvir notícias tuas de vez em quando. Com carinho, tua amiga, Beatriz.”

“Há poucas coisa no mundo tão eróticas quanto uma carta”, pensou enquanto roçava os dedos pelo papel. Subitamente, sua mente deixou de torturá-lo. “O cuidado na embalagem, a escolha do papel, a letra, que pelas curvas dos ‘Fs’ e dos ‘Gs’ denunciam a identidade da autora. O tempo necessário para cruzar o Atlântico, as rasuras nas palavras indesejadas que escaparam do pensamento por um descuido dos dedos, não tão rápidos. Como receber uma carta assim, aparentemente tão inocente, nos enche de vida”.

Ao lê-la pela décima vez, socou a mesa da sala e bradou decido: “Vou fazer uma loucura!”. Estava diante de si a solução para sua amargura, para sua tristeza e para o vazio de sua existência. Puxou da gaveta o último informe do banco. “Mil Euros, isso dá para a passagem e para umas semanas de estadia. Mas quanto tempo ficar? Não sei. Talvez dois meses, talvez nunca mais volte. É, o melhor é não retornar mesmo a essa cidade de merda. Mas e o que tenho aqui? Não importa, vendo tudo e me mudo para lá. Mas não há tempo, isso tem que ser feito o mais rápido possível. É verdade, deixo tudo como está e desapareço. Mas ela vive só? Não disse nada na carta, é possível que seja só um gracejo. E se ela estiver com alguém? Aos diabos, mesmo que não termine com ela, serei mais feliz no Brasil, longe do trabalho, das cobranças, do meu passado”.

E assim foi dormir, num êxtase de espírito, fazendo planos para sua nova vida a milhares de quilômetros de distancia, onde seria pobre e feliz, como Hemingway o fora em Paris. Adormeceu convencido de que era essa a única solução para seus problemas e chegou a jurar para si mesmo que a levaria adiante.

Acordou horas depois com a carta ainda entre os dedos e o informe do banco estirado em seu peito. No chão, anotações com preços de passagens e de hotéis cariocas de terceira categoria. Demorou alguns segundos para entender que aquela papelada era fruto do seu plano de fuga. De início, até chegou a ameaçar discar o número da companhia aérea, mas logo o abateu a consciência de que deixaria um emprego, um ainda adolescente filho, uma recém separada esposa, a opinião de toda uma vizinhança, dos alunos e dos outros professores do colégio, que tanto o estimavam. Com um risinho típico dos conformistas nos lábios, recolheu as folhas espalhadas pelo tapete, as amassou e atirou tudo na lixeira. Até pensou em queimar a carta, para certificar-se de que semelhante ideia nunca lhe ocorreria novamente. “Que devaneio, que falta de juízo e razão!”

E ainda não eram dez da manhã quando Nicola Pereira sentou-se mais uma vez em sua mesa, e passou a pintar de vermelho as provas da sexta série com setas, círculos, arcos e comentários quase ilegíveis por sobre o papel branco.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Sobre a amizade

Sostuvo Pereira, irredutível e de forma autoritária, que o andreol88.blogspot.com é uma leitura que vale a pena.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Sobre um momento

É tradição dentre as mais católicas famílias portuguesas, sempre numerosas, enviar o primogênito ao celibato ou, no caso de uma filha, à clausura. Amadeo Pereira, pai de Lourenço Pereira e avô de Nicola, para demonstrar sua inegualável fé cristã, enviou tanto o filho mais velho quanto a primeira menina à vida religiosa. Ela entrou em um convento numa vila da província, para depois seguir para uma irmandade na capital. O mais velho seguiu trajetória parecida, tendo iniciado o sacerdócio em uma pequena cidade do Alentejo para fazer carreira e ser jubilado em Lisboa. Isso não passa de um prefácio para alertar da religiosidade latente desse patriarca. O que realmente interessa vem adiante:

Mesmo para os dois filhos mais novos, entre eles Lourenço, era regra na casa dos Pereiras seguir rigidamente a liturgia cristã. Missas aos domingos, graças antes das refeições e preces ao pé da cama, além dos beijos de benção nos pés de uma toscamente esculpida estátua de São Francisco de Assis, eternamente martirizada por umas florescentes chagas. O soldo recebido por Amadeo, oficial de média patente do exército, permitiu à família uma razoável condição econômica e o envio de Lourenço à universidade de Direito. Sem dúvidas, era Lourenço mais capaz do que seu outro irmão, razão pela qual foi o eleito para seguir carreira superior. A notável inteligência - e a determinação em contrariar o pai e suas crenças de todas as maneiras possíveis, mesmo sem saber ao certo o que defenderia para isso - logo o atraiu aos grupos mais engajados da faculdade.E antes que o salazarista e devoto Amadeo se desse conta, já tinha dentro de casa um marxista republicano ateu.

O conflito, inevitável uma vez que ambos sentavam à mesma mesa todas as noites, levou ao rompimento dos dois por quase 40 anos, quando o advogado Lourenço Pereira, pai de um Nicola já adolescente, recebeu um bilhete escrito às pressas pela irmã: "Amadeo está morrendo, venha rápido". Em um primeiro momento, Lourenço nada fez se não sentar-se e caçar com os dedos volumosos chumaços de cabelo. Seus olhos permaneceram fixos em algum ponto perdido, e qualquer um o que o visse daquela maneira o taxaria de indiferente, frio e vil. Talvez não teria se enganado.

Acabou por ir a mortificação de Amadeo, que agonizava num leito hospitalar. Não houve reconciliação, apenas a troca de umas poucas palavras insuficientes para sanar quatro décadas de ausência. Logo morreu. As testemunhas daquele último suspiro contam até hoje sobre o silêncio quase absoluto de Lourenço, que quis saber pouco da vida dos irmãos e não desviou o olhar, compenetrado e misterioso, do pai, mesmo quando este já havia perdido a consciência e aceitado, sereno, a falência do próprio corpo. Acontece que foi essa escancarada serenidade do pai, morto abraçado no mesmo São Franciso e reconfortado pela crença na imortalidade da alma, que tanto perturbou o vivo.

Alguns anos adiante foi a vez de Lourenço convalescer numa cama de hospital. Assim como o pai, estava amarelo e escorria de seus lábios líquidos das mais variadas cores. Assim como o pai, seus olhos, antes compenetrados, estavam esbranquiçados e revirados nas órbitas, como bolas de isopor boiando numa banheira. Só que não havia tranquilidade nem paz, e sim uma alma ansiosa, aterrorizada e agitada, um animal acuado frente ao destino inevitável. Num cenário muito similar, estava a seu lado Nicola Pereira, e já vale adiantar que este não teve uma relação com o morto mais afável do que a entre Lourenço e Amadeo, mas disso, se vier ao caso, se fala mais tarde. O último ato do pai antes de perder os sentidos foi fincar as unhas com a pouca força que lhe restava no braço do filho, e dizer quase inaudível e sem esconder a dor provocada por cada palavra, o seguinte:

"Filho, não vou pedir desculpas pelas minhas faltas, pois já vivi isso e sei que não me perdoará agora, quando já não há tempo para perdoar. No máximo, te encherás de dó e pena por ver teu pai como uma massa em plena putrefação, mas desculpar-me é outra coisa, que muitas vezes precisa de compreensão que só os anos são capazes de trazer. Mas esqueça o que disse, pois eu mesmo não renegaria meu orgulho, que me é caro, para pedir-te perdão. Só preciso dar-te um conselho, um pensamento. Considere-o a única coisa que teu pai vai te ensinar que realmente será útil no futuro. Apegue-se quando ainda há tempo a alguma fé que profetize a vida após a morte. Alguma crença, não importa qual, que te garanta a continuidade da vida em algum lugar desconhecido e misterioso. Deixe-se levar por essa ideia, ame os bispos e pastores e permita que eles encham tua cabeça com misticismos e crendices. Não ouse contestar e puna-se cada vez que tua mente, que se crê tão aguda, der os primeiros sinais de dúvida da existência de uma força que tudo rege. No fundo, esse é nosso estado natural” - nesse ponto já quase não se ouvia a voz de Lourenço - "Acredite, filho, eu mesmo percebi isso quando morreu teu avô, que para mim era o ser mais abominável que já conheci. Mas mesmo odiando-o com todas minhas forças, hoje o invejo, porque passou numa inumana tranquilidade de espírito. Eu, por outro lado, temo, temo e temo. Para um ateu como teu pai, a ideia de não existir, de morrer e nem sequer ter o privilégio de sentir os vermes morderem minha carne, é bem difícil de aceitar, quase insuportável. He he he, mas isso não vai importar de muita coisa daqui a alguns minutos, não é?"


E assim morreu Lourenço Pereira, que não se privou do sofrimento inquieto até o último instante.