domingo, 10 de abril de 2011

Travessia

Anderson era filho da terra. Me lembro dele de cócoras em baixo da mangueira, tragando um cigarro com propriedade de homem feito, muito além dos seus quatorze anos. Os olhos? Os olhos eram puro desafio.

Me passou um cigarro, e eu vacilei por um momento enquanto corria o palito entre os dedos. “Não sei, se ficarem sabendo me matam”. “Vá lá, e você por acaso vai contar para alguém? O meu nem fingiu desgosto, tempo depois eu não precisava esconder mais o maço... Ande, traga a coisa”.

Dei de ombros, simulei coragem e traguei a fumaça com toda a habilidade de um virgem. Tontura, ânsia de vômito e tosse, muita tosse. Sarei só com um violento tapa nas costas. “Veja só, nem morreu. Agora mais uma vez, com calma, deixa a fumaça entrar devagar”.

Eu ri, agradecido, na época tinha uma face quase feminina de criança bem nascida, pele lisa feito pano de linho caro. Ao olhá-lo de volta, recebi aquela encarada de troça, de quem se diverte em ver duas passagens de tempo tão diferentes em corpos da mesma idade.

Lá do alto do pasto ouviu-se um relincho. A égua tinha disparado pelo campo esquivando-se do Benedito, o peão pai de Anderson, que a seguiu de chapéu abanando no ar, resmungão. “Olha só, meu pai não toma jeito nem pra serviço de mandado”, dizia Anderson. Achamos graça, ainda era manhã e o dia parecia ser imenso como o mato infinito.

Naquele dia, lembro que Anderson não tirava os olhos de mim, do jeito que eu me vestia, roupas brilhantes de novas escoradas nas raízes da mangueira. Ele mordeu os beiços num sorriso imenso e arrematou: “Pro rio?” “Que rio, a represa?” “Que seja, e para com essa mania de me corrigir, já falei”. “Tá, tá, mas a represa é muito perigoso, e você lá sabe guiar barco?” – Anderson fechou a cara, fez voz de autoridade – “Fui com meu pai atravessar saca de farinha na semana passada, remei a tarde inteira”. “Até onde?” “Prainha”. “Mas é muito longe”. “Você é que é um cagão”.

Dum mato ali perto surgiu brusco um tatu, que cruzou ligeiro bem diante de nós. Coisa incomum, inesperada. Mantivemos o silêncio, Anderson me deu as costas e ficou um bom tempo inebriado com a visão da represa da Barra, que, pelo menos para a sua vista, não acabava nunca.

Antes, há muitos anos, a água corria. Ali fora uma vez passagem do rio Piracicaba, que léguas adiante, diziam, se juntava com outro rio ainda maior – será possível? – e juntos desaguavam no mar. Hoje já não era, nem as pessoas mais contavam as distâncias em léguas. Ficaram só os relatos dos nossos pais, que quando crianças nadavam pelados nas margens do Piracicaba.

“Você bem sabe que meu avô não deixa a gente subir no barco assim sozinhos. E se tomba, o que a gente faz?” “Teu avô por acaso disse para você ir no Alegria comer as putas?” – Eu corei de vergonha – “Pois então, eu não te levei lá? Aqui é quase a mesma coisa, esquece do velho por um minuto e confia em mim”.

“Não sei, tenho um pouco de medo”, confessei. Eu tinha diante de mim uma figura triunfal, que abriu um sorriso amarelo, dentes por demais separados uns dos outros; o cabelo crespo, textura quase mulata, áspera de tanta terra e poeira já grudadas na pele. Os lábios eram desafio... e satisfação. Um gigante.

“C-A-G-Ã-O. Se não quer, vou eu mais eu”, e Anderson atirou-se pelo barranco que terminava no casebre de bambu dos pescadores. Mal podia conter-se, desfez o nó que prendia o barco a uma estaca. Já dava com as canelas no barro úmido quando avistou-me atrás de si. “Não fode, vou com você”.

O barquinho não aguentava mais de quatro pessoas. Era simples, para pescarias fáceis e adepto de poucas aventuras. Ao menor sinal de tempo bravio, rezava a prudência retornar e não provocar a sorte. Só que naquele dia qualquer preocupação parecia exagero. O céu limpo, nuvens quase diluídas no azul de tão frágeis. Vinha uma brisa quente que chocava contra nossos peitos nus e aquecia os pulmões. Água parada, vencida, morta.

Não remamos muito, dava para avistar a margem e a casinha de bambu. Ouvia-se somente a brisa morna e o barco pendendo para um lado e para o outro. Fumamos enquanto Anderson me perguntava da vida em São Paulo, de viagens para o exterior, de filmes no cinema e estádios de futebol. Eu me interessava mais por pontapés dados no nos moleques do sítio, cavalgadas de três dias ao alto da serra, cicatrizes deixadas por Dito que ele exibia com orgulho. “Essa foi por uma vez que matei aula para beber com o Damião. Cheguei em casa e o velho já estava com a cinta na mão, a filha da puta da professora tinha contado tudo. Aguentei feito homem, não chorei nem nada”.

Vez por outra atravessavam as margens amontoados de quero-quero em voo baixo, a gente até se abaixava. Ficamos ali por mais de uma hora, agora quietos, deitados com os braços a proteger os olhos do Sol. O barco vinha e ia a esmo, e da represa subia um cheiro de pouca vida, até mareava o estômago.

Anderson olhou-me demoradamente mais uma vez, semi-adormecido, e abriu mais uma vez o sorriso amarelado. Eu já sabia que esses olhares cheios de troça e curiosidade vinham acompanhados de algum gesto para colocar-me à prova. Ele botou-se de pé, sentiu que o barco desequilibrou-se para a direita, e, feito um trapezista, apoiou os dois pés nas quinas do barco. “Tá louco? Você vai virar a coisa!” – Eu acordei e agarrei imediatamente as laterais de metal – “Louco? Vá lá! Eu agora comando tudo, escolho se a gente volta a nado ou não”. Antes mesmo de me deixar retrucar, Anderson flexionou a coxa direita e vez o barco pender para o lado, não tombou por pouco.

“Desce, porra! Assim você mata a gente. Desce ou...”. “Ou o quê? Você vai me bater?” “Não”. “Já sei, ou o seu avô vai mandar meu pai embora”. “Não, esquece o que eu disse, só desce, por favor”. “Tá bom” – Claro que ele não desceu, estava imóvel suspenso pelas quinas do barco, e eu ainda dei-lhe a satisfação de ver-me suplicar feito uma criança. Foi quando Anderson me encarou e riu mais amarelado do que nunca, com um gosto só: puxou o pé direito para junto da quina da esquerda, o barquinho projetou-se leve no ar e fomos os dois para a água.
Braçadas de desespero, eu retornei à superfície. Era tudo igual, a água continuava densa escura, o cheiro ainda desagradava os sentidos, os quero-quero passavam baixos, somente o barquinho flutuava inverso. E Anderson? Não estava. Esperei por mais alguns segundos, dei tempo para que a respiração se acalmasse. “Anderson! Anderson!”. Minha voz parecia ser engolida pelo remanso de tanta água. Virei, busquei as margens, esperando que por milagre ele reaparecesse ali, nadando com os braços fortes e negros. Mas era só água.

Agarrei-me no barco. Meu peito tinha sido invadido por um temor sem tamanho, um medo da perda, medo do Dito e seus olhos avermelhados de raiva, medo do meu avô. Para meu alívio, Anderson logo apareceu das profundezas, gargalhando incontrolável, satisfeito com minha cara de medo. “Tu não toma jeito mesmo, não é?”

Rimos e, apesar de assustado, senti-me cheio de satisfação, pleno. Demorou pouco para que eu avistasse na margem a silhueta do Dito, que acenava violentamente com os braços. Nos apoiamos no barco virado e o empurramos de volta à margem. Mal chegamos, o Dito agarrou o filho pela camiseta e arrastou-o morro acima. Anderson ia de cabeça baixa, sabendo que lutar seria inútil. Mas encontrou tempo e coragem para olhar de relance para mim, ainda inerte ao lado do barco, e mostrar aquele sorriso amarelo de satisfação desmedida uma última vez. No dia seguinte, voltamos a nos encontrar.