sábado, 27 de fevereiro de 2010

Sobre a amizade

Sostuvo Pereira, irredutível e de forma autoritária, que o andreol88.blogspot.com é uma leitura que vale a pena.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Sobre um momento

É tradição dentre as mais católicas famílias portuguesas, sempre numerosas, enviar o primogênito ao celibato ou, no caso de uma filha, à clausura. Amadeo Pereira, pai de Lourenço Pereira e avô de Nicola, para demonstrar sua inegualável fé cristã, enviou tanto o filho mais velho quanto a primeira menina à vida religiosa. Ela entrou em um convento numa vila da província, para depois seguir para uma irmandade na capital. O mais velho seguiu trajetória parecida, tendo iniciado o sacerdócio em uma pequena cidade do Alentejo para fazer carreira e ser jubilado em Lisboa. Isso não passa de um prefácio para alertar da religiosidade latente desse patriarca. O que realmente interessa vem adiante:

Mesmo para os dois filhos mais novos, entre eles Lourenço, era regra na casa dos Pereiras seguir rigidamente a liturgia cristã. Missas aos domingos, graças antes das refeições e preces ao pé da cama, além dos beijos de benção nos pés de uma toscamente esculpida estátua de São Francisco de Assis, eternamente martirizada por umas florescentes chagas. O soldo recebido por Amadeo, oficial de média patente do exército, permitiu à família uma razoável condição econômica e o envio de Lourenço à universidade de Direito. Sem dúvidas, era Lourenço mais capaz do que seu outro irmão, razão pela qual foi o eleito para seguir carreira superior. A notável inteligência - e a determinação em contrariar o pai e suas crenças de todas as maneiras possíveis, mesmo sem saber ao certo o que defenderia para isso - logo o atraiu aos grupos mais engajados da faculdade.E antes que o salazarista e devoto Amadeo se desse conta, já tinha dentro de casa um marxista republicano ateu.

O conflito, inevitável uma vez que ambos sentavam à mesma mesa todas as noites, levou ao rompimento dos dois por quase 40 anos, quando o advogado Lourenço Pereira, pai de um Nicola já adolescente, recebeu um bilhete escrito às pressas pela irmã: "Amadeo está morrendo, venha rápido". Em um primeiro momento, Lourenço nada fez se não sentar-se e caçar com os dedos volumosos chumaços de cabelo. Seus olhos permaneceram fixos em algum ponto perdido, e qualquer um o que o visse daquela maneira o taxaria de indiferente, frio e vil. Talvez não teria se enganado.

Acabou por ir a mortificação de Amadeo, que agonizava num leito hospitalar. Não houve reconciliação, apenas a troca de umas poucas palavras insuficientes para sanar quatro décadas de ausência. Logo morreu. As testemunhas daquele último suspiro contam até hoje sobre o silêncio quase absoluto de Lourenço, que quis saber pouco da vida dos irmãos e não desviou o olhar, compenetrado e misterioso, do pai, mesmo quando este já havia perdido a consciência e aceitado, sereno, a falência do próprio corpo. Acontece que foi essa escancarada serenidade do pai, morto abraçado no mesmo São Franciso e reconfortado pela crença na imortalidade da alma, que tanto perturbou o vivo.

Alguns anos adiante foi a vez de Lourenço convalescer numa cama de hospital. Assim como o pai, estava amarelo e escorria de seus lábios líquidos das mais variadas cores. Assim como o pai, seus olhos, antes compenetrados, estavam esbranquiçados e revirados nas órbitas, como bolas de isopor boiando numa banheira. Só que não havia tranquilidade nem paz, e sim uma alma ansiosa, aterrorizada e agitada, um animal acuado frente ao destino inevitável. Num cenário muito similar, estava a seu lado Nicola Pereira, e já vale adiantar que este não teve uma relação com o morto mais afável do que a entre Lourenço e Amadeo, mas disso, se vier ao caso, se fala mais tarde. O último ato do pai antes de perder os sentidos foi fincar as unhas com a pouca força que lhe restava no braço do filho, e dizer quase inaudível e sem esconder a dor provocada por cada palavra, o seguinte:

"Filho, não vou pedir desculpas pelas minhas faltas, pois já vivi isso e sei que não me perdoará agora, quando já não há tempo para perdoar. No máximo, te encherás de dó e pena por ver teu pai como uma massa em plena putrefação, mas desculpar-me é outra coisa, que muitas vezes precisa de compreensão que só os anos são capazes de trazer. Mas esqueça o que disse, pois eu mesmo não renegaria meu orgulho, que me é caro, para pedir-te perdão. Só preciso dar-te um conselho, um pensamento. Considere-o a única coisa que teu pai vai te ensinar que realmente será útil no futuro. Apegue-se quando ainda há tempo a alguma fé que profetize a vida após a morte. Alguma crença, não importa qual, que te garanta a continuidade da vida em algum lugar desconhecido e misterioso. Deixe-se levar por essa ideia, ame os bispos e pastores e permita que eles encham tua cabeça com misticismos e crendices. Não ouse contestar e puna-se cada vez que tua mente, que se crê tão aguda, der os primeiros sinais de dúvida da existência de uma força que tudo rege. No fundo, esse é nosso estado natural” - nesse ponto já quase não se ouvia a voz de Lourenço - "Acredite, filho, eu mesmo percebi isso quando morreu teu avô, que para mim era o ser mais abominável que já conheci. Mas mesmo odiando-o com todas minhas forças, hoje o invejo, porque passou numa inumana tranquilidade de espírito. Eu, por outro lado, temo, temo e temo. Para um ateu como teu pai, a ideia de não existir, de morrer e nem sequer ter o privilégio de sentir os vermes morderem minha carne, é bem difícil de aceitar, quase insuportável. He he he, mas isso não vai importar de muita coisa daqui a alguns minutos, não é?"


E assim morreu Lourenço Pereira, que não se privou do sofrimento inquieto até o último instante.